sábado, fevereiro 11, 2012

Eis o mistério da fé

Num desses domingos fui ao Mosteiro São Bento para a missa com canto gregoriano e órgão. É um desses passeios obrigatórios em São Paulo e entendi o porquê. O mosteiro estava cheio, pessoas sentadas no chão, pessoas de pé, e durante toda a missa reinava um silêncio incrível do público enquanto ressoava por cada parede o som dos tubos do órgão e as vozes de pouquíssimos homens que se multiplicavam pela igreja. Foi belissimo ouvir aqueles sons numa manhã calma de domingo em São Paulo, e ver tantas pessoas em comunhão pronunciando juntas as mesmas frases de fé.
Toda vez que vou a um culto religioso é assim, raramente não vejo ali beleza, seja na roupa das pessoas, seja em suas vozes, em suas músicas, em seus templos, porém há sempre uma esfera que permanece impenetrável para mim. E não é porque acredito em X e por isso não consigo acompanhar os que acreditam em Y, não sei como seria um judeu praticante num culto católico, por exemplo, mas não é assim que me sinto. O desajuste é um pouco maior. Não é que eu não acredite no culto de imagens e acredite em vida após a morte, não é que eu acredite em reencarnação e não no progresso visando o Nirvana. Eu simplesmente não acredito.
Pode parecer um assunto bobo, mas não é. Viver numa sociedade em que muitos acreditam e não acreditar gera conflitos internos bastante interessantes, para dizer o mínimo.
Meus pais não me batizaram, eles não são praticantes de nenhuma religião, os chamados agnósticos. Embora visitar a igreja de Nossa Senhora Aparecida no interior tenha sido parte de algum roteiro de viagem, promessas sejam feitas em troca de algum beneficio do "divino", e exista um certo panteísmo na minha educação, meus pais sempre acreditaram que deveríamos, meu irmão e eu, ter a liberdade de escolher nossas crenças quando achassemos mais conveniente.
Pelas circunstâncias da situação da educação no país acabei estudando parte da minha vida em colégios religiosos, ambos católicos, nos quais tinha as chamadas aulas de religião, que misturavam uma proto-catequese com pseudo-discussões sobre assuntos como homoafetividade e aborto. Assim. Só coisa leve e pouco ideologizante. Lembro-me até hoje, no ensino médio, de uma discussão sobre aborto e de uma sobre eutanásia nas quais eu devo ter sido a aluna mais chata da vida daquelas professoras. Eu simplesmente não conseguia concordar com o que elas diziam e fazia questão de deixar isso claro.
Durante anos eu busquei a fé. Estudei sobre algumas religiões. Por alguns anos, entre os 13 e uns 16 anos de idade, me interessei bastante pelo judaísmo, lia tudo que havia sobre o assunto, frequentava o Centro de Cultura Judaica e aprendi muita coisa. Hoje não me interesso pela religião, mas a cultura judaica ainda me fascina muito. Convivi com budistas, frequentei centros espíritas e sessões de mesa branca, li Violetas na Janela, fiz um curso para católicos na escola fora do horário escolar durante um ano, li muito da Bíblia católica, visitei algumas igrejas protestantes, enfim, eu procurei e achava que em algum momento eu encontraria.
Outro dia fui a um casamento católico celebrado por um padre bastante interessante que me fez ficar bastante chocada com pessoas que são capazes de casar na igreja apenas pela convenção da coisa. O casal em questão era de fato bastante religioso, mas sabemos como as coisas geralmente funcionam. Quero dizer, naquele momento você jura, você dá a sua palavra a coisas que você não acredita e sabe que não irá cumprir. Pareceu-me muito forte esse momento, eu não seria capaz de jurar em falso coisas do tipo, pareceu-me um desrespeito fazê-lo, um desrespeito às próprias convenções humanas e ao valor da palavra empenhada.
No fim acho que a fé é algo que se tem e pronto, ninguém tira de você e não sei até que ponto alguém, ou algo, pode colocá-la em você. Sem grandes intelectualizações, não acho mais que seja racional, eu não escolhi não acreditar. Eu não acredito e pronto. Quando as pessoas me perguntam por que eu não acredito em Deus eu não posso responder que é porque ninguém provou que ele existe, não posso dizer que Descartes não me convenceu (embora eu tenha sido bastante ingênua no meu primeiro ano de faculdade lendo feito uma louca as Meditações Metafísicas achando que no fim eu estaria convencida da existência de Deus para valer!). Não é nada disso, é uma coisa do sentir. Eu não sinto, e não só Deus, eu não sinto nada que vai além do que eu vejo ou compreendo racionalmente.
Na missa católica há um momento em que o padre apresenta a hóstia como sendo o corpo de Cristo e o vinho como sendo seu sangue, e naquele instante é corpo e é sangue de fato. A missa diz, ali: eis o mistério da fé. E é bem isso.

sexta-feira, fevereiro 03, 2012

A Cracolândia e a Nova Luz


O primeiro fato a ser considerado é a criação do Projeto Nova Luz em 2005 como parte do plano da Prefeitura de São Paulo para a revitalização do Centro,  programado para estar pronto em abril de 2011, porém os planos de urbanização começam a ser aprovados apenas em 2010. O segundo fato é que, próximo ao Natal, a Favela do Moinho, no bairro da Luz, é destruída por um incêndio, desalojando centenas de pessoas; o noticiário nos faz crer que o fogo começou por descuido de um dos moradores. Terceiro fato: um edifício de uma antiga indústria, localizado ao lado da Favela do Moinho, e ocupado por diversas famílias é implodido, ainda que a implosão seja um fracasso, no primeiro dia do ano. No terceiro dia de 2012 – o quarto fato – a Polícia começa uma mega operação na região conhecida como Cracolândia, no bairro da Luz.
O que une os quatro pontos elencados acima é o primeiro fato, ou seja, os outros três são ações que visam colaborar para o primeiro, o Projeto da Nova Luz. Para um objetivo sobre o qual todos estão convencidos de ser uma boa coisa, a Prefeitura parece acreditar ser válido o uso de quaisquer meios.
Após meses empurrando os usuários de crack de uma rua para outra do centro de São Paulo, a Prefeitura resolveu “eliminar” a Cracolândia. Existem centenas de pessoas nessa região vivendo nas ruas dia e noite em função de sua dependência da droga, e agora a Polícia Militar chegou para bater, empurrar, chutar, prender, enfim, amedrontar essas pessoas. A rua Helvetia, que estava repleta deles, agora está tranquila, mas os moradores de Higienópolis sabem daquilo que a Prefeitura finge não saber: os dependentes não vão desaparecer por um passe de mágica; e por isso os moradores do bairro mais nobre da região central temem que a realidade da Cracolândia esteja em suas calçadas pela manhã do dia seguinte à ação policial.
A Prefeitura de São Paulo quer “revitalizar” o Centro, mas se esquece de que vai colocar vida de novo em um lugar no qual já há vida. Com certeza a vida que lá está não é a da beleza do Leblon das novelas, mas ali moram pessoas com suas famílias, certamente muitas irregulares, ocupando ruas e prédios abandonados porque o aluguel no Centro é abusivo. Quando a Prefeitura apóia a construção e reforma de prédios no Centro com apartamentos a preços altíssimos, que vida ela quer recolocar na região? E os que não podem pagar, que morem nas periferias e enfrentem três horas de viagem para ir e voltar de seus trabalhos. Quando a Prefeitura quer enfrentar o problema de saúde pública que é a Cracolândia e coloca 30 agentes de saúde e 300 policiais nas ruas, qual discurso vencerá, o da violência ou o da possível reabilitação? 
O Ministério Público abriu inquérito no dia 10 de janeiro sobre a chamada Operação Centro Legal na Cracolândia para investigar a violência da Polícia Militar e o tipo de abordagem aos dependentes químicos. Enquanto isso a população da cidade de São Paulo assiste a tudo confortavelmente pela televisão, acreditando que o trabalho esteja sendo bem feito pela polícia e esperando por uma Nova Luz.


-este texto escrevi em 05 de janeiro para enviar a um jornal do interior, que não o aceitou.