sábado, julho 28, 2012

Le garçon Tam-Tam

Capítulo do filme Contos da Noite de Ocelot.


Era um final de semana de fim de outono, um domingo bastante frio e com muito vento de novembro. Era a Festa das Ciências em Paris e por isso o museu Cité des Sciences et de l'Industrie estava com entrada gratuita. Nunca tinha ido ao Parque de la Villete (um dos maiores da cidade), nem ao museu - maior da Europa dedicado às ciências. Resolvi ir então.
O museu é bastante interessante, um Beaubourg das ciências. Eu gostei muito das partes sobre astronomia e óptica. Porém, terminado o museu, restava passear pelo enorme parque atravessado pelo canal de Ourcq.
O parque estava completamente vazio, talvez por conta do frio e do vento, a luz do fim de tarde era maravilhosa, e... um som diferente. Um som grave de tambor um pouco oco soava pelo parque. 
Passarinho, que som é esse?
Fui seguindo o som até chegar a muitas árvores finas e com algumas folhas numa ingrime subida coberta de barro e folhas secas. Fui subindo e chegando cada vez mais perto do som.
Para além das árvores havia uma pequena arena cercada de baixas escadas nas quais estava sentado um homem tocando um tambor de som mágico. Fiquei escondida atrás de uma das árvores apenas ouvindo, mas o homem do tam-tam mágico me viu depois de um tempo, e me chamou para ouvir mais de perto.
Eu fui.
Ele tocou um pouco mais. Parou. Ofereceu-me o instrumento para que eu tocasse um pouco, mas desengonçada como sou, sem ritmo, foi um horror, mesmo que ele tentasse me ensinar as diferenças entre os sons dos cantos, do meio, tocando com as palmas das mãos ou com a ponta dos dedos.
O tambor era um tabla, um darbuka egípcio, feito de couro, madeira e corda. Aquele som de fato não me era estranho, me lembrava dança do ventre.
Começamos a conversar sem parar. Ele falava sobre o instrumento, sobre como aquele parque ficava cheio de pessoas e música nos dias quentes, sobre a tranquilidade para ensaiar, sobre sua vida e sua família. Andávamos então em direção à saída da Avenida Jaurès. Ele colocou a mão nos bolsos, mexendo numas moedas e disse: "Se eu tiver dinheiro o suficiente, você quer tomar um chocolate quente?". Eu respondi "claro".
Samad.
Aquela tarde teve de terminar porque eu devia pegar o metrô para encontrar um pessoal que conhecera na festa do Beaujolais. No final das contas ninguém apareceu, eu tomei um bolo depois do chocolate quente e nunca mais vi aquela magia do tam-tam que eu nunca mais esqueci.

segunda-feira, julho 02, 2012

COMIDA DI BUTECO


    Durante o mês de junho aconteceu em São Paulo a competição "Comida di Buteco". Como eu sei? O SPTV da Globo me falou; afinal, "a tv do demônio" não é de todo mal. Achei que seria uma boa ideia ter um pretexto para sair de casa em algumas noites do mês para conhecer lugares da cidade aos quais nunca tinha ido. E, ali mesmo, diante da TV, a decisão foi tomada: tentar ir aos bares mais atraentes, sem pressa, sem desespero, conforme fosse dando.
   A competição se mostrou uma ótima maneira não só de comer coisas deliciosas, como também de passear pela cidade conhecendo bairros bem diferentes, conversar com donos e funcionários de bares e, é claro, sair de mão dada por aí com o namorado. 
   É claro que ninguém sai impune. O repórter do SPTV que visitou os 49 concorrentes e que fez reportagens bem legais que por vezes me levaram a escolher um bar ou outro disse ter engordado quatro quilos, e com certeza não gastou um centavo. Já eu, engordei um quilo com apenas 7 bares e gastei uma boa grana, boa porque valeu cada centavinho.
     Um amigo uma vez me ensinou que economizar com comida quando não se precisa fazer isso é besteira e que quando viajamos devemos nos deixar levar pelos prazeres da mesa. Quando viajo busco experimentar de tudo um pouco que couber no meu bolso, mas em São Paulo tendo a ser bem muquirana. Primeiro porque é uma cidade extremamente cara; segundo porque o dia-a-dia não permite luxos que normalmente nos permitimos em viagens, quando vivemos num "estado de exceção". Mas pensei que um mês gastando um pouquinho a mais não poderia me matar, e quem me conhece sabe que sou a pessoa mais mão-de-vaca que conhece...
     A brincadeira-competição funciona assim: foram selecionados 49 butecos (definição discutivelmente aplicada a alguns) que deveriam criar ou selecionar uma comida em seu cardápio, aqueles que visitassem o bar e comessem aquilo que foi selecionado receberiam uma cédula na qual deviam, de um lado, preencher seus dados pessoais e, do outro, avaliar o "tira-gosto" provado (70% da nota), o atendimento, a higiene e a temperatura da bebida no local (outros 30%). Com o tempo, conversando com donos e funcionários, fomos descobrindo outras coisas, como por exemplo que os bares não se candidatavam, eles eram procurados por uma equipe e que um dos critérios para participar é que os donos trabalhem no buteco, ou seja, não basta ser dono e ficar num escritório ou em casa, tem que ser desses bares familiares em que o dono põe a mão na massa. Outra coisa interessante é que não só os butequeiros amadores como nós estavam avaliando, os bares eram visitados por um júri, que só se identificava ao final, apresentando uma "carteirinha" para não pagar a conta. Fiquei interessada em participar, quero ser jurada! 
     Após breve pesquisa no site do evento (http://www.comidadibuteco.com.br/), muito organizado e com mapas e fotos que facilitaram as escolhas, resolvemos ir num bar que há tempos tinha vontade de conhecer, graças a uma coluna no suplemento Comida da Folha, o Bar do Plínio. 
     O bar é famoso porque seu dono mesmo pesca no Pantanal os peixes ali servidos, até parece história de pescador. O "tira-gosto" (não gosto desse nome famoso da butecagem, seria mais um põe-gosto) escolhido fora inventado especialmente para a competição, chamava Rabo de Saia, um bolinho de traíra acompanhado por um saboroso molhinho feito de fruta, agora não lembro qual, mas era bem bom. O buteco, esse merecia bem o nome, fica numa esquina íngreme da Casa Verde, com garçons simpáticos e cardápio recheado, de fato, com peixes de todo tipo por preços até que justos, tendo em vista a conjuntura da cidade. Quando terminamos de comer ainda estávamos com fome e disposição para visitar outro lugar, primeiro dia, sem preparo e sem internet, perguntamos ao garçom que nos atendia se ele conhecia outro bar na região que estivesse participando também. Ele nos indicou o Bar do Luiz Fernandes no Mandaqui e até me ensinou como dirigir até lá. Esse é outro bar bastante falado na cidade e tradicional também.
     Bom, claro que eu errei por uma rua o caminho e não achei o bar, só a filial não-participante da Av. Eng. Caetano Álvares, mas foi bom duas vezes, uma porque ele já estava fechado (descobrimos depois que o bar fecha aos sábados às 19h) e duas porque encontramos, sem querer, O Alemão. Como os bares participantes penduram bandeirinhas do evento e uma placa na entrada, tivemos o prazer de passar diante de um bar participante. O Alemão é dirigido por um ex-garçom do Bar do Luiz Fernandes, justamente; um catarinense que justifica o apelido de "alemão" (em São Paulo todo loiro vira o alemão da turma). O quitute por ele oferecido no bairro do Imirim é um risole de berinjela chamado Escondido de Berinjela, que com o passar do concurso mudou de nome oficial para risole, mesmo. Talvez o problema era que fosse oferecido grande em unidade e não pequeno em porções, mas ainda assim delicioso, bem recheado e de fritura sequinha. Ali o atendimento foi tão bom, o dono tão simpático e falador, que ficamos para outro prato fora do concurso e comemos costelinhas de porco. Além da simpatia do dono e dos funcionários, o bar está entre os meus favoritos para um retorno pós-competição pelo preço e fartura; a mesa ao lado comia uma carne seca com mandioca que sustentava umas cinco pessoas. Buteco é isso,né? Simplicidade, cerveja barata e comida de acordo com a sede e a fome.
    Para o segundo final de semana decidimos nos preparar mais e não irmos à zona norte. Graças à reportagem do SPTV escolhemos o bar Amigo Leal e, no caminho de volta para casa, a Cervejaria do Alemão. Depois dos bares visitados devo dizer que a melhor comida foi a do Amigo Leal, bar embaixo no Minhocão na Santa Cecília (o site diz ser na Vila Buarque, eu arrisco até República, mas enfim). Eles resolveram fazer um prato bem maluco e chamá-lo de Doidera Alemã. Um dos patrocinadores da competição era o Doritos, então eles fizeram um prato de joelho de porco frito e em volta uns doritos de queijo nacho com um patê de repolho roxo e maionese (outro patrocinador era a Hellmans). Falando até parece pouco atraente, mas a qualidade da carne e a mistura de sabores e texturas que acontecia na boca merece o prêmio de uma das melhores coisas que comi na vida. Originalidade, nesse quesito o bar merece nota 10. Porém, o bar é, digamos, muito "sofisticado" para ser chamado de buteco, ainda mais com "u", está mais para restaurante alemão, e estava bem cheio e por ser pequeno, muito barulhento. O atendimento não era amigável, apenas respeitável, e nada pessoal.
Atestado da Cervejaria do Alemão
    No caminho de volta do centro para casa, paramos na Mooca, meu! E lá fomos conferir um bar que dá Atestado de Buteco. A Cervejaria do Alemão atesta, para quem precisar, com assinatura do dono, que o cliente esteve no local de tal a tal horário, em tal data,sob cuidados profissionais para tratamento "cervejalógico e choppológico". Se eu ainda trabalhasse no banco, com certeza levaria para minha chefe depois de faltar um dia, seria, no mínimo, hilário. Ali não só o dono trabalhava, mas também a esposa muito simpática e a filha. A porção era bem interessante: Costelinha de Tambaqui. Peixe gostoso e bem fritinho, fresquinho, mas sem muito inovação no sabor, apenas na apresentação; eu, pelo menos, nunca tinha comida costelinha de peixe. Além disso, já estávamos bem satisfeitos e cheios da grande porção de joelho de porco do bar anterior.
      No terceiro dia de bares decidimos ir a um só, pois também queria ir experimentar um milkshake com sorvete Häagen- Dazs que estava sendo testado numa hamburgueria da cidade, a qual também nunca tinha ido, bem fancy por sinal. A hamburgueria e o milkshake não tem nada a ver com o Comida di Buteco, mas se você chegou até aqui no texto é porque gosta de comida, então vale a pena falar um pouco mais do assunto. A Häagen- Dazs me fez saber pelo Facebook que estavam testando no General Prime Burger quatro novos sabores de milkshake usando sorvetes da marca, e aquelas fotos me deixaram louca, não pude resistir e quis ir lá provar pelo menos um. Entre Tamarindo, Floresta Negra, Beijinho e Romeu e Julieta escolhi o segundo sabor porque era o único que levava sorvete de chocolate e não de baunilha. O namorado não pôde deixar escapar a cena de Pulp Fiction, quando Vincent fica abismado com o preço do milkshake que Mia pede na lanchonete:
VINCENT: Did you just order a five-dollar shake? (Você pediu o milkshake de 5 dólares?)
MIA: Sure did. (Claro que sim)
VINCENT: A shake? Milk and ice cream? (Um milkshake? Leite e sorvete?)
MIA: Uh-huh. 
VINCENT: It costs five dollars? (Custa cinco dólares?)
MIA: Yep.
VINCENT: You don't put bourbon in it or anything? (Você não coloca bourbon nele ou coisa assim?)
WAITOR: Nope.
VINCENT: Just checking. (Só checando)
    Well, o milkshake custava bem mais de cinco dólares nesse caso, mas quando ele veio e experimentamos, a reação foi a mesma que de Vincent:
"That's a pretty fucking good milkshake. I don't know if it's worth five dollars but it's pretty fucking good." (Esse é um puta de um milkshake bom. Não sei se vale cinco dólares mas é bom pra caralho).
         Mas essa incrível experiência milkshakeana foi depois de visitarmos o bar Leporace, no Campo Belo. Um dos primeiros que tinha visto na TV, ele me chamara minha atenção porque seu quitute era "meio" árabe. O Arais é uma porção de pão sírio cortadinho depois de recheado com carne moída temperada com especiarias assado na grelha, acompanhado com molho de coalhada seca. A foto não mentia, aquilo tem uma gosto diferente e muito bom, para quem gosta de sabores árabes é uma beleza. A porção peca apenas por ser pequena e, por isso, não fazer jus ao preço. O bar mais longe ao qual fomos também não poderia ser chamado de buteco, mas talvez de "boteco chique", que é mais hype; atendimento comum, nada memorável na simpatia ou amizade.
      Depois de um final de semana comendo churrasco em Lins, no último final de semana da competição fomos a dois bares da zona norte. O Mercearia ZN nos atraiu pela proposta de Purê de Mandioquinha com Carne Seca, e se revelou um "barzinho chiquetoso" bem atraente em meio ao Jardim França. Da comida devo dizer que o purê roubou o prato com o molhinho de pimentão vermelho, um dos quatro mini-acompanhamentos do prato, e que a carne seca estava salgada demais. Ali, como em outros bares, apesar de vazio, o atendimento não foi nada especial, mas quero crer que estavam já cansados, uma vez que chegamos lá quase meia noite. Não posso esquecer de falar que ri muito ao ir ao banheiro do Mercearia ZN, voltei sorrindo à mesa, pois no banheiro feminino havia cabine para deficientes físicos, porém o banheiro ficava no segundo andar da casa após dois lances consideráveis de escada, e não conseguimos localizar elevadores na casa. Curioso, para dizer o mínimo.
      Para encerrar a noite, e nossa pequena participação na competição, fomos ao Famoso Bar do Justo em Santana. O mais antigo bar participante está ali pertinho do metrô Carandiru desde 1946 e transformou o clássico Bolinho de Bacalhau no segundo quitute a merecer uma nota 10 em minha cédula. Além de sequinho e com gosto, de verdade, de bacalhau, eles tiveram a brilhante ideia de rechear o meio do bolinho com requeijão cremoso e azeitona preta, era de comer de olhos bem fechados. Buteco butecão, esse fica aberto até as 3h da matina, não tem chopp, o preço da cerveja é meio salgado, mas os salgadinhos no cardápio são diversos. O garçom que nos atendeu era divertido e educado (brincou com minha insistência por refrigerante zero e opção pelo suco de abacaxi sem açúcar), nos contou a história dos jurados e respondeu à nossa pergunta:
- Afinal, quem ganhar, ganha o que?
- Bom, aparece na Globo, até no Jornal Nacional.
      Precisa dizer mais? Além disso, como ele lembrou, só de participar o bar já ganha visibilidade e novos clientes, como nós, que fomos ali por conta da competição e que com certeza voltaremos e indicaremos aos amigos. Certeza! Disse até que se eles ganhassem era pra gente dar uma ligadinha lá e falar com ele porque vai ter comemoração.
       Com essa espécie de brincadeira de caça ao tesouro misturada a eleições aprendi várias coisas sobre butecos, comida e São Paulo. Talvez a mais importante seja que sair de carro à noite em Sampa é bem mais tranquilo e divertido quando buscamos descobrir bairros fora do eixo Vila Madalena - Pinheiros - Augusta, evitamos o estresse do trânsito, dos valets, das filas e das entradas cobradas. A zona norte me surpreendeu positivamente, já estava explorando a região antes do concurso e agora vou me dedicar mais a ela, com exceção da loucura da Av. Eng. Caetano Alvares e da Av. Dumont Villares (a rua do SESC Santana), ali é possível estacionar sem problemas e não há trânsito nem muvuca. Alguns já sabem que me nego a pagar "vigiadores de carro" e evito estacionamentos, pois a rua é de todos, inclusive minha. Todos os bares foram visitados de carro e em todos eu estacionei na rua, em lugares próximos aos bares. É claro que sair de carro tem suas desvantagens, ser a "motorista da vez" impossibilita o chopp gelado e a cartela de cachaças. Também percebi que temos muitas palavras e especificações para bares, de buteco a barzinho há uma gama extensa, que sentimos logo quando damos de cara com um bar; e que comida de buteco está também sofrendo as consequências da importância crescente que a gastronomia vem ganhando em São Paulo, consequências positivas no sabor e variedades que melhoram, mas negativas nos valores e supervalores que começam a aparecer.
       Agora é esperar pra saber se tive um bom faro e se o vencedor estará entre os que visitamos. O resultado sai dia 10 de julho.

Doidera Alemã - prato do Amigo Leal