segunda-feira, agosto 13, 2012

Balanço


Não sei bem ao certo se por conta dos mesmos medos que um dia me levaram a prestar concurso público para um "bom emprego" no qual eu ficaria sete meses, ou se por conta de uma conversa num café em Port-Royal na Paris de dois anos atrás, mas o fato é que resolvi prestar vestibulinho para um curso técnico de nível secundário.
Aquela conversa naquele café entre duas garotas intercambistas em Paris mexeu com as duas, foi aquele tipo de diálogo para um filme e que nunca mais sai da memória. Ali conversaram sobre projetos, vida acadêmica e futuro. 
Dois anos depois reencontrei minha amiga em seu país natal, defendendo o mestrado, trabalhando como professora e, como pensáramos naquela conversa, guia de turismo durante o verão. A conversa no café nos levou à ideia de trabalharmos como guias de turismo em nossos respectivos países, fortes no setor, mais ainda o dela do que o meu.
Fui aprovada no vestibulinho, fiz a matrícula e lá fui eu, bacharel, licenciada e mestranda, voltar às cadeiras escolares. 
Não há como não pensar em Drew Barrymore em Nunca Fui Beijada; uma jornalista que volta ao colégio para escrever uma reportagem. Como Josie, eu não fui lá muito popular no ensino médio, bom, até fui, só que ao contrário. Quase todos aqueles clichês de nerd-sofredor dos filmes americanos, eu vivi, de tachinhas na cadeira a lanche mastigado jogado dentro da mochila. Mas, diferentemente de Josie, eu não estou ali para trabalhar secretamente, nem preciso me envolver com os alunos para conhecer suas festas e costumes.
Como uma "professora-to-be", imaginei duas coisas:
1) nada pode ser pior do que as aulas de licenciatura. Meus colegas sabem o quanto sofremos naquelas aulas, logo, pensei que nenhuma aula, nem mesmo de um técnico, poderia ser pior do que aquilo, em termos de picaretagem dos professores e "contação de histórias" dos alunos. Ledo engano...
2) será uma experiência única para um professor ainda e sempre em formação poder estar do outro lado, já que grande parte dos alunos da turma ainda cursam o ensino médio e que, normalmente, os professores de filosofia trabalham nessa faixa de ensino.
Choque!
Infelizmente, constatei que ali acontece como em muitas escolas: uma mistura cruel entre pessoas que não querem ensinar, chamadas ainda assim de professores, e pessoas que não querem aprender, também ainda assim chamadas alunos. Isso é frustrante para aqueles que estão ali seriamente e com grandes expectativas em relação a um curso que é o único gratuito na área, ministrado por um centro público estadual prestigiado em todo país e obrigatório para se ter um registro no Ministério do Turismo.
A média de atraso dos professores para entrar em sala de aula para o primeiro horário tem sido de 30 minutos, a média, ou seja, tem professor que se atrasa muito mais. Depois de os alunos terem ouvido no primeiro dia que atrasos não seriam tolerados, que acarretariam em falta na disciplina e todas aquelas ameaças que professores não deveriam fazer em início de curso, uma vez que eles mesmos não conseguem cumprir com seus horários. E os atrasos se dão no primeiro e no segundo horário, após o intervalo. Após uma semana de aula eu entendi que não valeria a pena chegar na hora marcada anteriormente para esperar professor, então resolvi também eu chegar atrasada, ou seja, chego uns 5 minutos antes do professor entrar em sala. Um dia cheguei no horário "teórico" e sequer o portão da escola estava aberto...
O despreparo dos professores é flagrante, alguns parecem ter despencado de para-quedas numa escola, com dificuldades até mesmo para respeitar a língua portuguesa, outros buscam a aceitação dos alunos transformando-se em adolescentes, há ainda outro, o doutrinador, que diz ser seu papel "criar pessoas questionadoras", mas que solta os clichês mais batidos e não gosta de ser questionado pelos alunos.
Professores e alunos adoram usar exemplos como argumentação, o que me transporta para o famoso Muro das Lamentações das aulas de licenciatura, e as atrocidades faladas por professores em dez dias de aulas já daria um pequeno livro para uma série "Você está fazendo isso errado". 
Ali uma Coleção Primeiros Passos já seria capaz de operar milagres. Uso então exemplos.
Um professor, que já mostrara na primeira aula ter muito senso histórico [cof cof] disse que um dos motivos pelos quais os povos pré-colombianos foram subjugados pelos espanhóis é o fato de serem ingênuos. Logo em seguida avacalhou o fato de só no Brasil escrevermos Brasil com S, que isso é um absurdo, que essa mudança devia ter sido feita no último Acordo Ortográfico, porque o mundo todo escreve com Z, então nós brasileiros devíamos também escrever com Z. No mesmo dia, para meu desespero, a seguinte frase: "Em sociologia, o que difere o homem do animal é a capacidade de se organizar para o trabalho. O índio não se organiza para o trabalho."
Outro professor, num acesso de machismo, soltou frases nas quais dizia que mulheres são fofoqueiras e adoram falar pelos cotovelos, enquanto a sala, garotos e garotas, riam alto. Um outro ainda busca valorizar a arte popular desvalorizando a arte que ele chama erudita, excluindo os alunos, colocando-os distantes dessa cultura, e ainda diz que uma banda ou uma orquestra toca Shakespeare. E para não acabar a semana sem nada, outro professor usa o termo "indigente" para morador de rua, mais de uma vez, sendo inclusive corrigido pelos alunos em suas respostas, que insistiam no termo "morador de rua".
Cada dia chegar e aguentar esse tipo de coisa, e ainda mais, tem sido um desafio que não estou certa de estar disposta a enfrentar. É uma mistura doída de inconformismo, revolta, vontade de fazer alguma coisa e não saber o quê, com o medo de enlouquecer.
Vou arrumar minhas coisas, trocar de roupa, senão chego mais atrasada do que o professor da primeira aula.