sábado, setembro 22, 2012

Penélope e Ulisses

Penelope - David Ligare
          
          Ulisses é o personagem da Odisseia de Homero, era o cachorro de Clarice Lispector e é também o título do livro de James Joyce. 
James Joyce é irlandês e seu livro sobre um 16 de junho de Leopold Bloom se passa em Dublin.
Dublin está a 9.384km de São Paulo, no hemisfério norte, do outro lado do Oceano Atlântico.
O homem que amo foi morar em Dublin.
E assim voltamos a Ulisses de Homero, cuja esposa se chama Penélope.
Penélope fica e Ulisses vai à guerra. Enquanto isso, por anos, Penélope é cortejada pelos homens de sua cidade, muitos deles interessados nas posses de Ulisses que estão agora sob sua responsabilidade. Ela, para se livrar dos pretendentes, como uma Sherazade buscando se safar da morte, anuncia que só se casará novamente quando tiver terminado de tecer o que havia começado.
Penélope tece durante o dia e desfaz à noite, esperando fiel por Ulisses.
Ela não tem perfil no Facebook, nem conta no Skype. Ulisses tampouco tem acesso a SMS ou à internet. Vivem em outros tempos. Mas são do presente. Penélope e Ulisses são daqueles personagens fundadores do pensamento ocidental, símbolos que explicam até hoje nossa experiência.
Saudade - Almeida Junior
Os demônios da ausência contra os quais Penélope tem de lutar em sua guerra solitária são tão presentes quanto a Medusa e as sereias enfrentadas por Ulisses em sua odisseia.

Mesmo com Facebook, Skype, celular, avião e toda tecnologia a que tenho acesso, digo: Sou Penélope.
Isso não quer dizer que estou sendo exagerada, dramática, desproporcional. Já ouço as vozes que se querem razoáveis dizendo "mas ele não foi para guerra", "ele foi porque quis", "não é impossível vê-lo", "você tem internet e câmera integrada ao seu notebook". Sim, vozes pós-modernas, concordo. Isso não faz de mim menos Penélope. É a força do símbolo, da alegoria até.
Ausência e saudade. 
Suspensão.
Ainda que seja possível ter notícias da pessoa ausente, isso não faz dela presente. Não há imagem, não há mensagem e não há vídeo que coloque no real o cotidiano de volta em seu lugar. Não há inovação tecnológica capaz de ser o abraço daquela pessoa durante a noite, o comentário bobo e espontâneo diante da televisão, a companhia do café da manhã, almoço e janta.
Penelope Unraveling her Work at Night - Dora Wheeler
De Penélope e Ulisses de Homero até eu e o homem que amo muitos anos se passaram. Os sofrimentos e desejos humanos continuam os mesmos. A curiosidade e o ímpeto de conhecer o novo em conflito com o desejo de segurança e o medo continua a confundir os mais sensatos e os mais corajosos. O amor nos liga e nos dá vontade de seguir juntos por aí, mas amor é asa - como diz Gabriela de Amado - e não cadeia, e o amor quer ver o outro crescer e ser feliz, mesmo que para isso seja preciso sofrer. A distância é cruel, mas o amor não é mesquinho. A ausência é túnel, mas o amor é corda, é linha. Linha do tear de Penélope, fio de Ariadne.

"7. Instalo-me sozinho, num café; alguns vêm me cumprimentar; sinto-me acolhido, requisitado, lisonjeado. Mas o outro está ausente, evoco-o em mim mesmo para que ele me retenha na beira dessa complacência mundana que me espreita. Apelo para sua 'verdade'(para verdade cuja sensação ele me dá) contra a histeria de sedução com a qual me sinto resvalar. Torno a ausência do outro responsável por minha mundanidade: invocosua proteção, sua volta: que o outro apareça, que me retire, como uma mãe que vem buscar o filho, do brilho mundano, da fatuidade social, que me devolva 'a intimidade religiosa, a gravidade' do mundo amoroso.
8. Um koan budista diz: 'O mestre segura a cabeça do discípulo debaixo da água, durante muito, muito tempo; pouco a pouco as bolhas começam a se rarefazer; no  último momento, o mestre tira o discípulo, reanima-o: quando você desejar a verdade como desejou o ar, então saberá o que ela é.'
A ausência do outro segura minha cabeça debaixo da água; pouco a pouco, sufoco, meu ar se rarefaz: é por essa asfixia que reconstituo minha 'verdade' e preparo o Intratável do amor."  
Roland Barthes - Fragmentos de um discurso amoroso

Penélope - Tatiana Blass