quinta-feira, agosto 22, 2013

Orgulho e Preconceito

Já não é mais o assunto da vez, já foi ultrapassado pela traição do marido de uma das participantes da Fazenda e pelos pelos (maldita reforma ortográfica e o fim do acento diferencial) pubianos da última capa da Playboy, mas há algumas semanas atrás o assunto era só esse: a orientação sexual do personagem Félix da novela das nove da Globo, Amor à Vida. Ou melhor, a revelação de sua orientação sexual.
Para quem não acompanha a trama: desde o início ele prometia ser o vilão-dos-vilões, sucessor de Carminha de Avenida Brasil (que eu não vi) e, sendo assim, o favorito de todos os espectadores. Ele também já dava pinta de que era gay. 
Eu torci o nariz, poxa, por mais que o vilão seja sempre adorado pela galera da geral, os gays nunca aparecem como personagens de destaque nas tramas, e agora vai aparecer um como vilão? Fui mudando de opinião, porque, do mesmo jeito que não é o fato de ser gay que faz de alguém vilão, não é só porque alguém é gay que é bonzinho, não é mesmo? Uma coisa não tem a ver com a outra.
[A novela tem ainda um casal gay, Nico e Eron, que querem ter um filho, e no fim Eron vai cair de amores por uma mulher amiga do casal que os ajuda sendo barriga-solidária. Devo dizer que isso sim me faz torcer o nariz. Ao invés do autor Walcyr Carrasco dar um final feliz ao casal e mostrar uma adoção ou concepção bacana de uma criança por um casal gay, não, ele vai e destrói a relação dos dois como numa punição pelo desejo deles de formar uma família. Enfim.]
No episódio de 01 de agosto*, a esposa de Félix (sim, ele é casado e tem um filho) revela para toda a família na mesa de jantar que seu marido é gay, apresentando como prova fotos dele em momentos íntimos com seu amante. Estão presentes o pai e a mãe de Félix, César e Pilar, sua irmã -a protagonista da trama-Paloma, seu filho Jonatan, sua sogra, sua avó e alguns empregados da casa.
A repercussão do episódio foi enorme nas redes sociais e programas vespertinos. Porém, o impacto daquele e dos dois ou três episódios que se seguiram só poderá ser medido com o tempo. Arrisco dizer que aquelas cenas marcarão a história da TV brasileira e da causa gay no país.
Félix (Mateus Solano) e Jacques (Julio Rocha) em cena de Amor à Vida
Quem vê qualquer novela sabe que há ali inúmeras coisas que passam muito longe da realidade, e não é só o fato de ter um ônibus chamado Zona Leste em São Paulo, ou Marrocos e Brasil serem aparentemente a uma distância SP-Rio, faz parte da sedução que a novela exerce no espectador mexer com o improvável, com o desejável e com o faz-de-conta. Contudo, o conflito todo gerado pela revelação de que Félix é gay aproximou-se assustadoramente da realidade.
Alguns disseram ferozmente que a novela era preconceituosa pela forma como o assunto foi abordado. A realidade é que é preconceituosa. Que Félix tenha feito de tudo para negar a revelação, que seu pai tenha sido um escroto ao saber, o preconceito está na trama ou na vida real? É só ver quantas vezes e de que forma a palavra "vergonha" aparece nesse episódio. 
Um cara se casa com uma mulher, tem um filho, vive de aparências para garantir o amor, o afeto e a herança de seu pai, enquanto isso tem um amante homem. Quantos casos assim existem na vida real? Quantas pessoas não passam pelo sofrimento de lidar com sua sexualidade na chave da vergonha?
O pai de Félix reagiu, e tem reagido ainda, como muitos pais de homossexuais, rejeitam o filho e obrigam-no a mentir para "aceitá-lo" de volta. César obrigou, ou melhor, chantageou seu filho a continuar casado com sua esposa para que não o tire do testamento nem o mande embora de seu emprego, disse que tem vergonha de ter um filho gay, e que ele é um homem alfa pegador de mulheres. Já sua mãe, sua avó e sua irmã, se mostraram mais compreensivos. A mãe, Pilar (Suzana Vieira), fez um discurso didático, decoradinho, sobre como devemos aceitar os homossexuais. A avó veio com aquela história "ah, eu tenho amigos gays e eles são super legais". Não é que Suzana Vieira seja uma péssima atriz, mas a situação traz desconforto mesmo às mães que aceitam seus filhos, e o discurso vem decorado da "cartilha-do-tolerante". A avó carrega o discurso do que se diz sem preconceitos simplesmente porque se relaciona com o diferente.


O que a novela mostra é a vergonha imposta pela sociedade a pessoas que fogem de um padrão também imposto. Vergonha que gera medos, infelicidade e total insatisfação com uma vida falsa.
A vergonha é o que impõe uma sociedade àqueles que quer o tempo todo esconder. Há uma regra de normalidade a ser seguida, no caso, a hetenormatividade, em outros casos o cabelo liso, o corpo escultural (considerando esculturas gregas do corpo atlético), a pele branca etc. Àqueles que não se encaixam nos padrões dos modelos a serem seguidos cabe apenas se esconderem, em casa, ou em guetos. Resta apenas não se misturar, frequentar bares, restaurantes, shoppings e até mesmo ruas destinadas apenas a seus pares. Beijo entre dois homens tudo bem no bar gay, mas nada bem no meio da Praça da Sé, ou na novela das nove, porque choca criancinhas. Na Parada Gay pode, porque está todo mundo lá para isso, tem data no calendário e, como no bar gay, quem foi lá e viu não pode reclamar.
A resposta a essa vergonha só pode ser o orgulho! Esfregar na cara de todo mundo que gay existe, que vive, que tem direitos e que tem orgulho, e não vergonha, de ser o que é. 
Lembro das camisetas "100% Negro" que surgiram há tempos atrás, alguns diziam que iam fazer camisetas escritas "100% Branco" também. Mas para que? O homem heterossexual branco e rico já domina o país, já tem o poder, e não é humilhado, envergonhado todos os dias. Ele é o vencedor. 
Por isso, dias do orgulho, do orgulho gay, da consciência negra, das mulheres, são dias para nos lembrarmos de que o orgulho deve ser demonstrado todos os dias, é dia de luta.
Outro dia o jogador Emerson Sheik, que é heterossexual, postou uma foto beijando um homem na boca. Foi um escândalo, e não faltaram vozes contrárias ao que não passava de uma manifestação de carinho entre dois amigos. Quero ver quem é que vai se levantar e gritar para quem quiser ouvir que é gay. Seja ou não jogada de marketing, o que pessoas como Daniela Mercury fizeram não é fácil e demonstra sim orgulho, além de possibilitarem a existência de figuras públicas de destaque afirmando sua orientação sexual, com vozes que são ouvidas.
Não vamos nos esconder! A rua, o restaurante, o bar, o cinema, e qualquer espaço público que seja também é meu.
É a afirmação cotidiana do orgulho que pode vencer a vergonha e a humilhação.


*veja os episódios - http://tvg.globo.com/novelas/amor-a-vida/capitulo/2013/8/1/paloma-apoia-felix-e-o-deixa-sensibilizado.html