sábado, março 14, 2015

Madeleine

O que é memória? O que é lembrança? Segundo o dicionário lembrança é aquilo que vem à memória e aquilo que se guarda na memória, ou seja, a memória é a gaveta, e as lembranças são aquilo que guardamos na gaveta e ao que recorremos para lembrar.

Para quem, como eu, tem problemas em acessar lembranças, a memória por vezes parece aquele gaveteiro de escritório do qual você não faz a menor ideia de onde está a chave. E é claro que a informação de onde está a chave também está fechada numa gaveta emperrada, daquelas entulhadas de coisa que você puxa e carrega o móvel todo junto.

Mas aí outro dia, ao abrir gavetas -de verdade-, arquivos e caixas antigas, encontrei um mundo do qual eu havia parcialmente me esquecido, um universo de relações que o tempo e a mágoa apagaram.

Uma carta, um recado, um presente, tudo de um passado não muito distante mas do qual as lembranças rareavam, quase nunca emergiam à superfície da memória.

E, de repente, não é só uma memória vaga do que houve, mas surgem diante dos olhos e dos demais sentidos, quase como reais, vozes, cheiros, mapas, texturas e promessas de eternidade até então fechadas em caixas onde guardei o que queria esquecer.

Mas e se essas caixas reais cheias de objetos reais forem jogadas no lixo, forem destruídas para sempre? Se era aquele bilhete, aquele recorte, aquele papel de bala a chave para abrir o gaveteiro da memória, se esses pedaços reais daquele mundo que hoje só existe em lembrança ficarem inacessíveis para sempre então também assim estará esse mundo para mim?

Daqui dez anos, quando for novamente desfazer armários e abrir memórias onde não mais estarão aquelas lembranças então a chave não será girada e nunca mais sentirei aquele cheiro daquela pele branca macia e nem ouvirei aquela voz um tanto rouca e anasalada. Continuarão, talvez para sempre, trancados num arquivo remoto da memória, sem acesso porque não há chave.