terça-feira, janeiro 26, 2016

Minhas três São Paulos

17
7,5
3

Esses são os números que representam, em quilômetros, a distância a pé de uma casa em que morei até o Marco Zero de São Paulo. 

Recentemente me mudei de casa, e de bairro. Isso apenas pela segunda vez na vida -na verdade terceira, mas vou desconsiderar a casa na qual fui bebê, que poderia ser a casa 6,5, na zona norte. Hoje moro na casa 3, ou seja, a 3 km do Marco Zero. Os bairros nos quais eu morei, como se pode imaginar pela distância do centro histórico, são extremamente diferentes entre si.

Como deve acontecer com muitos paulistanos, o caminho foi esse: da mais distante para a mais próxima do centro, da periferia, portanto, para o centro.

Até os meus 15 anos morei na casa 17, num bairro na zona leste, aquela região que aparece apenas como um bloco uniforme, mas que na verdade é um grupo de bairros extremamente diferentes entre si. No "centrinho" do bairro há um mercado, farmácia, perfumaria, padaria, escola estadual e um posto de saúde. Minha avó materna mora ali há anos, mais de 40. Nas fotos antigas, as ruas eram de terra. Até pouco tempo atrás, inclusive, havia uma rua ainda não pavimentada no bairro, a qual chamávamos, evidentemente, a rua de terra. Qual o caminho para a feira de quarta? Olha, você passa a rua de terra e segue reto, sobe e lá no alto é a rua da feira.

Os únicos prédios do bairro, que fazem parte do mesmo condomínio, foram construídos há cerca de 15 anos, e falavam nas ruas que eles iam cair. Até então era assim: fulano mora em prédio? Então é "dos predinhos", bairro vizinho, na parte baixa da região.

Ali, as pessoas saem na rua com qualquer roupa confortável, vão na padaria de chinelo e os vizinhos se conhecem pelos nomes. Quando você liga para um e não consegue falar, liga para o vizinho e vê se ele sabe alguma coisa do paradeiro daquele que você procura. As famílias moram ali há anos e, como minha avó, há muitos idosos cujos filhos e netos já se mudaram de bairro mas quando eles voltam para visitar os vizinhos reconhecem e acenam.

Nos anos 90, ali entravam na sua casa para roubar o seu bujão de gás, ou a sua bicicleta guardada no quintal, ou arrombavam seu carro, dentro da sua garagem, para levar o toca-fitas. Roubavam sua antena de TV também, no telhado da sua casa. Um vizinho envenenava o cachorro do outro para que ele parasse de latir. Um vizinho mais legal só atirava laranjas no animal. Quando as linhas telefônicas eram mais caras do que aluguéis de casas em caso de emergência você usava o telefone do vizinho mas para pedir uma pizza você andava três quarteirões até o orelhão mais próximo.

Você pode achar que 17 km não é nada. Mas para chegar a uma estação de metrô o jeito mais rápido é andar uns 15 minutos até a avenida principal da região e pegar uma lotação ou então, se quiser andar menos, pegar o ônibus no "centrinho" que, como vai por dentro, pode levar uns 40 minutos até o destino final -isso fora da hora do rush e sem chuva. E aí tomar o metrô até o Marco Zero. 

Aos 15 me mudei para a casa 7,5, num bairro em expansão imobiliária e de moradores classificados como "novos ricos", ou seja, gente que, como eu, saía da periferia para se aproximar do centro e do trabalho. A linha do rodízio do centro expandido passava do lado de casa, assim como o trem e o metrô da linha vermelha.

Ali as pessoas olham atravessado para quem vai à padaria ou ao mercado de chinelo e com a "roupa de fazer faxina". Os prédios têm entrada de serviço e elevadores "de serviço", por onde circulam as empregadas domésticas cujos nomes apenas os porteiros sabem. 

As casas que restam no bairro estão sendo demolidas numa velocidade vertiginosa para vermos crescer, também em alta velocidade, prédios altos, residenciais ou comerciais, cheios de consultórios médicos e dentários. Há vários hospitais particulares no bairro também, mas no posto de saúde é possível marcar consulta com o ginecologista pro mês seguinte, talvez até para a semana seguinte.

Há dois shoppings centers, cada um com suas várias salas de cinema, mas um teatro bom só foi construído recentemente, dentro de uma escola, e recebe peças de comédia e shows de bandas cover. Há diversos mercados, várias lojas de rua de tudo o que você precisar, inúmeras escolas, particulares e públicas, bares e restaurantes, de mexicano a mongol. Na praça do "centrinho" do bairro tem agências bancárias de todos os bancos que se imaginar, padaria com ótimo pão italiano, salão de cabeleireiro, cafeteria, mercado, cursinho, papelaria, loja de calçados, de chocolates, igreja, e muitos carrinhos de cachorro-quente.

Tudo é perto mas ninguém faz nada a pé. As famílias têm dois ou três carros e tiram eles da garagem para tomar uma cerveja (e depois voltar dirigindo), jantar no restaurante a três quadras ou ir no cinema a quatro quadras. As pessoas têm medo de andar na rua de noite. E por isso as ruas são sempre desertas à noite. E histórias de roubos e assaltos se espalham entre os moradores dos condomínios, que fazem abaixo-assinado contra projetos de "habitação social" e pedindo postos de polícia nas praças.

Dali é possível chegar ao Marco Zero, de metrô, em cerca de 10 minutos.

Agora moro na casa 3. Aqui tem gente passeando com cachorro na rua às 3 da manhã. Há muito idoso e muita gente solteira e morando sozinha. Os prédios novos são raridade e os antigos, dos anos 50 e 60 são a maioria. Aos domingos grupos de crianças brincam no meio da rua jogando bola ou apostando corrida. Grupos de adultos fazem churrasco na calçada. A cada esquina um gênero diferente de música embala o almoço.

Há mercados pequenos, nenhum hiper mercado, farmácias, hospital público, posto de saúde, teatros, escolas públicas, particulares e uma grande escola judaica. As ruas estão sempre sujas, cheias de lixo e restos de móveis. Se você vacila caminhando pela calçada um menino, ou menina, passa de bicicleta e leva o celular da sua mão. 

Em algumas ruas, casas abandonas que um dia devem ter sido maravilhosas se enfileram. Grandes galpões guardam a memória de um passado de fábricas ao lado de grandes casarões que pertenciam aos mesmos donos. Aqui os moradores de rua conhecem os moradores dos prédios pelo nome, e vice-versa. E se cumprimentam. E aqueles trocam conselhos por comida e moedas desses.

Daqui é possível ir ao Marco Zero a pé em uns 40 minutos.

Essas São Paulos são tão diferentes uma da outra. Seus moradores, seus hábitos, sua etiqueta, seus gostos. E cada uma tem muito a ver com o que sou. Cada uma me ensinou suas lições valiosas, do que eu quero e do que eu não quero, do que eu sou e do que eu não sou, e, acima de tudo, do que eu preciso para viver aqui e do que eu não preciso.