domingo, junho 07, 2020

O extraordinário



Há dez anos eu vim ao Rio de Janeiro pela primeira vez. Lembro do fascínio que tomou conta de mim ao ver o Pão de Açúcar quando o ônibus que saiu do terminal ao lado da rodoviária rumo ao apartamento do couchsurfer que me hospedaria passou voando pelo aterro do Flamengo.

Como eu tomara um ônibus noturno de São Paulo, era muito cedo, o dia amanhecia. E essa sensação estranha de ver ali, em presença e peso, uma imagem repetida diversas vezes apenas como reprodução. Parecia que de repente começaria a tocar uma canção de bossa nova, como numa abertura de novela. Era como ver de pertinho alguém muito famoso de quem só se viu fotografias e vídeos infinitamente.

Nessa primeira viagem, me comportei como se nunca mais fosse ter a chance de pisar meus pés no Rio de Janeiro. Bem turisticamente, visitei o Cristo, subi ao Pão de Açúcar -em parte pela trilha, com a ajuda de outro couchsurfer-, fui ao Jardim Botânico, passeei pelas ruas e centros culturais do centro, fiz fotos na escadaria Selarón, dancei numa festa numa quadra de escola de samba.

A cidade mais linda do mundo. 

Voltei ao Rio muitas vezes desde aquele julho de 2010, reatualizando a primeira impressão. Muita coisa ruim acontece, mas 

A cidade mais linda do mundo.

O Rio não é como Paris ou Roma, tão lindas quanto suas famas. Paris é aquela sensação de quando se encontra a pessoa amada em sua melhor versão, na porta do cinema, ou numa mesa de restaurante a meia luz, o nervoso na boca do estômago, a expectativa de uma noite, a pessoa sorridente, bem-arrumada, cheirosa, um ar fresco. 

O Rio é aquele sentimento de quando se acorda pela manhã ao lado da pessoa amada, descabelada, com ramela, bafinho, e o quarto está quente, e a coberta está bagunçada, um descanso na alma, uma languidez, uma paralisia.

Nos últimos 90 dias, porém, o Rio tem sido aquele crush com quem se sai uma vez, outra vez, e outra, e toda a ação se resume a conversas interessantes e trocas de beijos. A ânsia de que a coisa evolua, que fiquemos nus logo, a frustração. Será que não tá afim de mim?

Hoje me enchi de coragem e caminhei até a praia de Botafogo. Uns 300 metros depois de sair do prédio, avistei o Corcovado e o Cristo. O clichê, a cidade de cartões-postais. 

E depois ali, olhando os barcos naquele pedaço redondo de mar, quase um lago, em que do lado oposto desponta o morro de formato característico que um dia quiseram chamar de Pão de Açúcar, eu chorei. Não podia tocar meu rosto para enxugar as lágrimas, então elas foram ficando, secando com o ventinho que vinha da praia. Fui até bem perto da água, me sentei, fechei os olhos, e resolvi ficar apenas ouvindo a água chegando devagar na areia. 

Como o sol se punha atrás do prédios, os morros mais distantes foram se tornando cor de rosa e, depois, também o Pão de Açúcar. A imagem de sonhos.

Estar fora de casa desde que as medidas de isolamento começaram fez com que eu construísse uma ideia de excepcionalidade, de suspensão do cotidiano, de extraordinário. Ainda que eu saiba que o vírus também está em São Paulo, que meus amigos e minha família também estão trancados, eu não criei memórias de casa sob a pandemia. Sendo assim, ainda há espaços para uma ilusão de que a volta será uma volta ao que havia antes. Ao ordinário. A imagem dos sonhos.

segunda-feira, julho 09, 2018

Conteúdo lésbico insuficiente

Nesta semana me aconteceu uma coincidência muito estranha. Ou não. Estava prestes a terminar de ler "Fome", de Roxane Gay, quando assisti ao standup "Nanette", de Hannah Gadsby. E os dois têm tanto em comum que senti necessidade de escrever para tentar organizar essas semelhanças. 

Não sou uma usuária frequente da Netflix, muito porque sou ruim de ver TV (nem tenho uma em casa), e porque tenho uma habilidade rara de não seguir séries do jeito certo (vocês não imaginam como se dá meu bem-querer por "Game of Thrones"). Mas, graças ao meu irmão, eu tenho um login.

"Fome" já estava no meu radar há muito tempo, apareceu em diversas listas de melhores do ano nos Estados Unidos, mas quando foi mencionado no prêmio Lambda, eu dei um basta na procrastinação e resolvi pegar um volume emprestado.

O livro de Roxane Gay é sobre si mesma, sobre seu corpo e seus traumas. Ela é uma mulher americana negra, de família haitiana, e gorda. Em determinado trecho do livro, ela diz já ter chegado aos 260 quilos. A passagem em que ela vai a um encontro para pacientes que querem fazer a cirurgia de redução de estômago é assustadora. O texto é formado por diversos capítulos curtos, de uma a cinco páginas, nos quais ela fala de suas experiências num corpo grande, pesado e mal tratado pelos outros. 

O que ele pode ter em comum com "Nanette"? Quase tudo, mas, sobretudo, o vocabulário sobrevivente.  

A discussão sobre isso é tão pouco presente nas obras produzidas por aqui, tão pouco presente na crítica brasileira. Falamos tão pouco do lugar da vítima e, quando falamos, quem fala são as pessoas que não são vítimas. Talvez estejamos dando ouvidos às mesmas vozes de sempre.

As vozes de Roxane e de Hannah são vozes de sobreviventes, de vítimas de abusos sexuais. E as duas são mulheres que sabem, agora, depois de muito esconder-se, levantar suas vozes. Ambas trafegam muito bem dentro do universo que sobreviventes têm construído para se conectar.

Tanto no livro quanto no espetáculo de standup as histórias seguem essa linha: 
abuso, 
a autodepreciação como tentativa de superar o trauma (Gay passa a comer descontroladamente, criando para si um corpo que cause repulsa aos violadores em potencial; Hannah faz piadas), 
muito silêncio, 
muita culpa (ambas falam sobre achar, de alguma forma, que mereciam sofrer o abuso que sofreram), 
vergonha (esse elemento grita nas duas obras) 
e então a conexão, a percepção de que falar sobre o assunto não vai curá-las, mas vai ajudá-las a se conectar e a, quem sabe, evitar outros abusos, ou, pelo menos, evitar outros silêncios.

Gay conta o dia em que descobriu o vocabulário sobrevivente, num livro, e da sensação de saber que ela não era a única mas que, infelizmente, assim como ela, muitas outras mulheres haviam sido estupradas. Descobriu que sua experiência de medo, vergonha, raiva de si, era comum em muitas outras pessoas. Ao final, quando narra a incapacidade de tratar do assunto com a mãe ainda hoje, ela fala sobre a esperança de que sua sobrinha não tenha que passar por um abuso e, se passar, que possa procurar ajuda, justiça, e não ficar calada e sofrendo sozinha.

Da mesma forma, Hannah escondeu o fato de ter sido abusada e de ter apanhado, escondia em piadas sobre seu corpo, sobre sua identidade, sobre sua orientação sexual. Mas agora, não dá para perder tempo, ela diz. Não me faça perder meu tempo. 

Existe uma urgência nas duas mulheres, uma necessidade de tentar mudar a trajetória de suas vidas, de buscar ser melhor. O que as duas estão fazendo, e elas falam disso com todas as letras, é buscar seu espaço.

Em um dos meus trechos favoritos do livro, Gay diz: "Isso é o que ensinam à maioria das garotas --que devemos ser magras e pequenas. Não devemos ocupar espaço. Não devemos ser vistas e ouvidas, e, se somos vistas, devemos ser uma visão agradável aos homens, aceitáveis na sociedade. E a maioria das mulheres sabe disso, que nós devemos desaparecer, mas isso é algo que tem de ser dito de forma ruidosa, repetida, para que possamos resistir a nos render àquilo que esperam de nós."

Bom, certamente não esperam de nós um standup cheio de verdades. Um standup, como muitos chamaram, raivoso --curioso como homens são incisivos, assertivos, mas mulheres são raivosas. "As pessoas só se sentem seguras quando o humor raivoso é feito por homens. Quando eu o faço, sou só uma lésbica furiosa estragando a diversão", diz Hannah.

Vamos estregar a diversão. Essa alegria de homens brancos heterossexuais que faz com que mulheres andem com medo nas ruas, de dia e de noite, que nos faz pensar duas, três, quatro vezes se vamos mesmo sair com aquele short curto naquele dia quente. Fico imaginando o que homens pensam ao ouvir de Hannah as coisas horrorosas sobre como só o que precisamos é uma surra de pau na cara e cavalgar num pinto para melhorar nosso dia. Ela faz aquilo parecer o que realmente é: asqueroso. Mas quem nunca ouviu isso na vida?

O tempo é de urgência. E não de hashtags. O tempo é de não deixar passar batido. Não me faça perder meu tempo.

PS. É claro que há outros pontos de contato entre "Fome" e "Nanette", e um deles é a orientação sexual, e como mesmo "our people", como diz Hannah, dá os seus "feedbacks" um tanto cruéis. Ambas falam sobre não se encaixar no gênero da forma como é esperado pela sociedade, ambas contam terem sido confundidas com homens. Mas isso fica para outro momento em que esse blog ressuscitar. Por enquanto, o conteúdo lésbico será insuficiente.

segunda-feira, setembro 18, 2017

Minhas férias

"Minha nudez já é estranha para mim. Meu corpo parece fora de época. Será que realmente usei trajes de banho, na praia? Usei, sem pensar, entre homens, sem me importar que minhas pernas, meus braços, minhas coxas e costas estivessem à mostra, pudessem ser vistas". O Conto da Aia, de Margaret Atwood

Quando li a passagem acima, logo grifei e marquei "Irã".

Uns quatro dias após chegar no país, em abril, me vi nua num espelho comprido que havia diante do chuveiro. Fiquei em choque. Depois de poucos dias usando véu e abaya, já achei a minha nudez estranha. Aquele cabelo, aquele colo, aqueles seios, eram os meus?

Dias depois, quando alguém do Brasil me mandou uma foto de amigos no bar, meu olhar foi diretamente para o decote de uma moça com seios fartos. O que estava acontecendo com meu cérebro?

Antes de ir ao Irã eu pensei: ok usar o véu, são apenas alguns dias. No terceiro dia, eu estava cansada de ter que controlar se minha franja saía por baixo do véu, se eu não levantava as mangas da camisa, por instinto, por conta do calor. O que mais me incomodava era ter de usar o véu o tempo todo, ter de lembrar de colocá-lo ao sair de casa, mantê-lo ao comer, ao viajar confortavelmente num avião ou num ônibus.

No quinto ou sexto dia, eu já me incomodava com o fato de estarmos eu e minha amiga, companheira de viagem, julgando as vestes de outras turistas. "Isso não está muito curto?". "Nossa, quanta franja aparecendo". Tínhamos prontamente nos tornado fiscais de regras com as quais não concordávamos.

Jardim Eram, em Shiraz
Em 2015, eu viajei à China. Eu queria conhecer um país completamente diferente do meu, uma cultura distante e milenar. Voltei achando que aquilo era o mundo de ponta-cabeça. Nos últimos dias da viagem eu estava odiando tudo. Quando voltei, me dei conta de que o que eu odiei foi a solidão. Estar num país tão diferente sozinha me obrigou a conviver comigo mesma mais do que jamais consegui, ou fui obrigada a. Para o Irã, resolvi viajar acompanhada. Descobri que era fundamental para mim ter com quem conversar num lugar em que não entendo ninguém nem nada e que quase ninguém me entende. 

Resolvi dar um tempo à reflexão antes de escrever sobre minha experiência no Irã porque uma viagem sempre se resignifica com o tempo, e não queria ser injusta com um país tão lindo e no qual fui tão bem acolhida.

O Irã é um país maravilhoso. Há paisagens estonteantes. Há uma história de cair o queixo. Uma Grécia no Oriente Médio, com muito deserto. Uma grande civilização, fundadora da humanidade.

Ali, com ajuda da grande ideia que é o Couchsurfing, Elsa (minha amiga com quem viajei) e eu fomos recebidas nas casas das pessoas, fomos levadas a mercados, lojas e restaurantes, nos explicaram e nos ajudaram. Com os iranianos que conhecemos, pudemos até ser "foras da lei". 

Primeiro porque o Couchsurfing é proibido no país, com o acesso vetado, só é possível se conectar a ele usando um VPN (assim como o Facebook e diversos conteúdos da internet). Depois, porque essas pessoas confiaram em nós. Um casal dividiu com a gente um pouco de seu vinho caseiro. Beber, vender e produzir bebidas alcoolicas no Irã é proibido. Um iraniano nos deixou assistir a canais ilegais, tendo acesso a programas feitos por iranianos para iranianos fora do Irã. Ter antenas e sintonizar canais da Turquia, Armênia e arredores também é proibido. Um jovem iraniano muito engraçado tocou para nós, enquanto nos dava uma carona em seu carro, música cantada em farsi por mulheres e nos incentivou a dançar. Dançar em público no Irã é ilegal, para homens e mulheres. Mulheres cantarem e gravar a voz feminina em farsi também é ilegal.

A surrealidade de tantas regras, quebradas a todo o tempo pelos iranianos, se tornou evidente num dos diálogos mais tristes que tivemos ali. Em Yazdi, cidade pequena e turística, um homem nos parou na rua e quis saber de onde éramos (isso era bastante frequente em todos os lugares, com exceção de Teerã). Pouco se importou com o fato de eu ser do Brasil (fato raro, normalmente evocam jogadores de futebol entusiasticamente), e se concentrou em elogiar a França, país de Elsa. "Oh, Paris, beautiful. Champs Elysées, beautiful. Tour Eiffel, beautiful". Fez cara de triste. "France, dance. Here, no dance". E fez o gesto com a mão, dedo em riste, de negativa.

Mausoléu de Shāh Chérāgh, em Shiraz

Nos guias que li antes da viagem, diziam que os iranianos adoram convidar estrangeiros para comer em suas casas, e até mesmo para pernoitar. Tivemos de recusar alguns desses convites. Talvez por sermos mulheres, eles não foram tão numerosos assim. Era difícil, em algumas regiões e bairros, até mesmo conseguir ajuda sobre direções, já que se pressupõe que mulheres não dirijam a palavra a homens sem que os homens comecem a conversa e, na maioria das vezes, as mulheres que encontrávamos ou não sabiam inglês ou eram muito tímidas ou tinham algum receio de falar com a gente.

Mas num parque em Isfahan tivemos de recusar o convite de uma família numerosa e falante (embora apenas um dos filhos falasse inglês), que queria muito que fossemos ficar em sua casa. Nos apresentaram todos, irmãos, tios, primos, nos mostraram os livros escolares das irmãs. As mulheres sorriam, nos olhavam curiosas. Numa praça, ganhamos morangos. E Elsa, ao dizer que uma das garotas do pic-nic (esporte nacional iraniano) estava muito cheirosa, ganhou uma borrifada em seu pescoço do perfume que ela usava.

Eu me senti segura o tempo inteiro em que estive no Irã e raramente desconfiei das intenções das pessoas. Eu comi muito bem, tudo era delicioso e bem temperado. O país é limpo, organizado e os iranianos parecem ter um olhar cuidadoso sobre a beleza das coisas. Qualquer praça de qualquer lugar era cuidada como se fosse o jardim de um rei.

Porém, o desconforto, até mesmo visual, com a situação das mulheres me faz pensar que não quero voltar para lá. Num calor seco e extenuante, me dava desespero estar com um véu cobrindo minhas orelhas e pescoço. Enchia-me de desespero ainda maior ver mulheres andando por aí com grandes panos pretos cobrindo todo seu corpo. 

Durante toda a viagem, e desde então, eu tenho me esforçado para compreender o que se passa naquele país. Algumas pessoas me disseram: ah, mas o Brasil também é machista, talvez até mais. Concordo que o Brasil seja machista, jamais negaria isso. Mas o relativismo tem seus limites. Entendo também que quase tudo do que me pareceu incompreensível se explica pela religião, pela crença e pela fé. Porém, existe uma diferença entre os demais países de maioria islâmica e o Irã, existe uma diferença entre os muçulmanos em Paris e em Teerã, existe uma diferença entre o Brasil e o Irã: a institucionalização. A lei religiosa no Irã é a única lei. A constituição do país é a lei islâmica. Ali, não existe escolha. Ali, a liberdade, se é que ela existe, ganha contornos bem espessos. No Ocidente, queremos defender que as mulheres muçulmanas possam sim usar seus véus nas ruas e escolas, mas no Irã eu, uma ateia, ou Elsa, uma protestante de origem huguenote, não podíamos comer descobertas, não podíamos mostrar nossos cabelos nem nossas orelhas. Ali, uma iraniana não pode não usar o véu.

"A humanidade é tão adaptável, diria minha mãe. É verdadeiramente espantoso as coisas com que as pessoas conseguem se habituar, desde que existam algumas adaptações". Atwood, de novo

domingo, julho 30, 2017

Sapeca iáiá

Minha vó foi copeira, arrumadeira e babá em casa de gente "muito chique", como ela conta. Trabalhou na rua Bahia, em Higienópolis, na alameda Barros, e na Condessa de São Joaquim.

Hoje, fomos almoçar num restaurante chiquetoso em frente à Praça Buenos Aires, onde ela costumava passear aos domingos quando trabalhava só até depois do almoço.

Ela me contou de uma foto que tirou ali na praça, vestindo uma saia preta longa de seda, que sua patroa tinha trazido para ela da Itália. Ela falou das roupas que usava: sempre de saia, luvas, vestidos elegantes. "Ninguém achava por aqui que eu fosse doméstica". 

"Era uma beleza morar no trabalho. Eu tinha um quarto todo bonito, banheiro com banheira só para mim." Ela diz que gostava de ser babá e de ser copeira, porque os doces eram todos feitos na copa. Ela fazia pudins e bolos. E passava os panos de centro de mesa das patroas, que não podiam ter nem sequer uma ruguinha. Não gostava de ser arrumadeira, engraxar os sapatos dos patrões e polir as maçãs que iam na fruteira da sala.

A patroa da rua Condessa de São Joaquim, era ateia, minha vó contou. Ela era babá da filha dessa mulher quando se casou. A patroa foi na igreja no dia do casamento, que foi na antiga igreja da Penha. "Mas ficou só na porta, não entrou porque era ateia." Minha vó parou de trabalhar em casa de família. A menina ficou doente de saudades da babá. "Mal sabia a mulher que eu sempre levava a filha dela para as igrejas ali da Liberdade e ensinava ela a rezar."

Nesse momento, já estávamos almoçando, ela pediu que eu acreditasse em deus. Que eu devia ter fé. Desviei do assunto, nem lembro como. 

No Jardim da Luz, que, assim como a praça, para ela, agora está feio, sujo e malcuidado, ela me contou da sua vizinha que a chamava para passear por lá. "Ela vivia me chamando para vir aqui no Jardim da Luz. Ela vinha sozinha, de ônibus, e passava o dia aqui procurando homem." A vizinha viúva chamava minha vó, também viúva, para ir passear no jardim em busca de homens prum "sapeca iá iá". Nessa hora, quase morri de rir. Não conhecia a expressão. "Safada ela era. Tinha um foooooogo aquela mulher." Dois homens passaram cantada na minha vó no nosso passeio no parque. 

Fiquei satisfeita com a história dessa vizinha, muito mais feliz do que as anteriores que ela tinha contado envolvendo homens. Certa vez, passeando no cemitério da Consolação em dia de folga quando era copeira em Higienópolis, um homem saiu correndo atrás dela com o pau pra fora. O dentista no qual ela ia, pago pela patroa da São Joaquim, tentou estupra-la uma vez. Ela fugiu correndo e gritando. "É por isso que eu falo: tem estupro sim, tem médico que estupra as pacientes."

Eu ofereci de refazer o retrato que minha vó tinha tirado na Praça Buenos Aires e que hoje se perdeu. Ela disse que não. Que não gosta de ser fotografada. Que naquele retrato ela estava linda, tinha 19 anos. De saia, cabelos compridos e sem óculos. Eu consegui um selfie do Jardim da Luz, para onde fomos mais tarde. Ela continua linda.

sexta-feira, julho 28, 2017

Bela Cintra, 221

No carro, paradas no semáforo, minha avó olha para mim e fala. "Vou te falar uma coisa. Você pode achar que é besteira, mas eu queria tanto sonhar com seu avô. Eu queria poder perguntar se onde ele está, ele está bem, se ele sente dor, saber como ele está."

E então, pela primeira vez, eu confessei a ela. "Eu sonho muito com o vovô, vó." 

Eu queria dizer para ela: deixa que eu pergunto. Mas achei que seria falso. Eu não faria isso, porque para mim não faz muito sentido. Mas eu torço para que ela consiga sonhar com ele.

Então eu expliquei para ela que meus sonhos com o vô são do passado, na vida que ele tinha aqui, com a casa dele, as roupas dele, na cidade em que ele morava.

Essa minha vó é uma grande contadora de histórias. São histórias de sua vida. Reais ou inventadas, para mim pouco importa. Se reais, impressiona pela maldade das pessoas. Se imaginadas, o que impressiona é a capacidade de criação da minha vó.

E ela não apenas narra as suas histórias. Ela atua. E nesse dia, ali na sala da minha casa, ela caminhou até a porta da cozinha, ficou bem ereta e imitou seu pai chegando em casa. "Pa-pa. Ele usava botas grandes, e batia um pé depois do outro quando chegava na porta. Pa-pa." E fez o gesto descrito.

E ela imitou minha bisavó --sua sogra--, sua madrasta (as melhores histórias envolvem essa mulher, que se fingia de mãe), suas irmãs. Encenou a fuga de sua mãe da fazenda --digna de novela das seis--, sua vida na fábrica de televisões e rádios na Vila Maria, sua adolescência regrada pelo pai e seu casamento.

O pai, chocado com os cabelos curtos e calças compridas que ela usava dois dias depois do casamento, ao qual ele não foi, ouviu da vizinha, minha bisavó: "O senhor aí não manda mais, agora quem manda é meu filho". 

As histórias se repetem. Algumas já não sei mais quantas vezes ouvi, e vi. Mas outras, ela parece contar sem querer. Elas parecem escapar. São as histórias secretas. Inéditas.

Dessa vez, ela falou do restaurante que sua avó tinha. Na rua Bela Cintra.

Depois, ela me contou que quase nunca se lembra daquilo com que sonha. Talvez ela sonhe com meu avô. E até faça as perguntas que tanto quer fazer. Não se lembra das respostas. Uma pena que não se lembre dos sonhos. Se acordada conta histórias tão incríveis, imagina sonhando.






sábado, dezembro 31, 2016

Retrospectiva de um retorno de Saturno

Se olharem no menu ao lado, verão que em 2016 eu bati o recorde de menos vezes em que escrevi neste blog desde 2007. 

No ano que começa, esse site aqui faz 10 anos, e espero ter mais tempo para escrever, e mais coragem para publicar o que escrevo. É uma daquelas resoluções de começo de ano que nunca se concretizam: escrever mais para mim, escrever mais para os outros, postar mais o que escrevo, escrever contos, fazer um curso de escrita criativa...

Por enquanto, resolvi escrever sobre este ano aqui que está quase acabando. Tem gente escrevendo textão no Facebook sobre o que fez e o que não fez, e tem gente reclamando de quem está escrevendo sua retrospectiva. O fato é que eu li todas que apareceram em minha TL, e algumas me fizeram chorar. Não há como negar, é nesta época do ano que paramos para pensar, nem que seja no tempo de uma ducha gelada para aplacar o calor, sobre o que fizemos ao longo do ano, sobre o que queríamos ter feito e não fizemos, sobre no que evoluímos e sobre como pode ser o ano que começa.

Essa coisa de ano, dia, hora, é tudo convenção. Eu sei. Mas não dá para fugir de todo esse sentimentalismo que paira no ar mais ou menos desde o dia 22 de dezembro. É triste, é melancólico, é narrado pelo Cid Moreira. 

Como plantonista de fim de ano, resolvi esperar o último segundo de 2016 para falar alguma coisa dele. Vai que no apagar das luzes ele resolve botar uma catástrofe, um ataque terrorista, um cantor morto bem no meio do caminho entre o passar o crachá na catraca da redação e o pegar as chaves da porta da minha casa.

Bom, lá vai. 

Hoje eu recebi uma mensagem de Whatsapp de uma amiga: "quero te dizer que vi em 2016 vc se transformar em uma mulher leve, divertida e aberta ao mundo. É muito lindo poder ver isso acontecer." 

E foi isso mesmo. Foi um ano de profundas transformações. Foi o ano do retorno de Saturno.

Mas 2016 foi quase que a consequência direta de algumas decisões, difíceis decisões (aqui, leia-se também, muito dinheiro gasto na terapia) que tomei nos últimos meses de 2015. Foram decisões que levaram anos para amadurecer na minha cabeça (anos, muitos dias sozinha na China e muita dor) e eu sabia que elas ajudariam a trazer modificações relevantes na minha vida. Eu só não imaginei que seria tanto assim.

Eu sei que 2016 foi um ano de merda para o mundo, para o Brasil, na política, para os direitos humanos e tudo mais. Eu sei que o Bowie morreu, que o Cohen morreu. Mas para ler sobre isso você pode ir no seu site de notícias, ou de factóides, favorito. Eu quero é escrever sobre mim, e sobre os meus.

Foi um ano de muitas primeiras vezes. No começo de 2016, fui pela primeira vez a uma astróloga. Ela me falou sobre o retorno de Saturno -que duraria até dezembro (ainda bem, chega!)- e avisou sobre junho (seria o mês mais difícil do ano, E FOI!). Pela primeira vez eu joguei futebol de forma minimamente organizada (numa quadra, numa equipe, uma vez por semana), senti como se chutasse uma bola pela primeira vez, será? Pela primeira vez eu tive uma paixão de carnaval, que começou, aconteceu e acabou como o carnaval: divertido, meio bêbado, gostoso e rápido. Pela primeira vez eu me apaixonei viajando de férias, pela primeira vez me apaixonei por um estrangeiro, e tudo deu errado, de uma forma cruel e desnecessária, que fez eu me sentir uma estúpida, dessa vez em duas línguas. 

Eu confundi sexo com amor, eu confundi sexo com amizade e amizade com amor, e tudo isso vice-versa.

Eu consegui me afastar de um amigo muito importante na minha vida, que me ajudou a ver coisas muito importantes, a quem eu amava muito, mas que não suportava me ver naquilo que eu me transformei, ainda que tenha sido com a ajuda dele, que me queria ver para sempre uma adolescente espirituosa, contestadora, metida a diferente.

Eu sofri de saudades, de amigos que foram morar longe, e de um amor platônico que resolvi deixar dentro da caverna para sempre enquanto eu saio para a luz. 

Pela primeira vez eu troquei as cordas de um varal de teto, arrumei torneira pingando, troquei puxador de porta, botei gente para fora da minha casa. 

Eu olhei para minha perna se movimentando e pensei: caramba, eu preciso fazer exercício e firmar essa coxa aí. E eu me enchi de coragem, coloquei números no papel, chequei minha conta bancária e voltei a fazer esgrima (com o futebol, acho que vai resolver o lance da coxa). Eu passei a mão no meu rosto e pensei: caramba, cadê aquela oleosidade? E passei a seguir uma rotina de cremes e protetor solar. São os 30 chegando.

Eu passei a dormir em todo e qualquer filme a que eu assista em casa, seja dia ou noite. Então passei a ir mais ao cinema. Eu passei a dormir depois de quatro ou cinco páginas de um livro, e para isso ainda não arranjei uma solução. Eu fui em dois casamentos na mesma semana, de gente que eu amo, e chorei igual criança. Eu me reaproximei de pessoas queridas das quais eu já não tinha mais nem o número de telefone. Eu pensei em procurar um antigo amor avassalador, e desisti.

Em 2016 o Renan veio (tem um texto em rascunho aqui no blog só sobre isso) e eu pensei por algumas horas que tinha 16 anos de novo, que íamos ao Bocage, a boates miadas, com RGs falsos. Meu coração se encheu de amor por saber que amizades como a nossa nunca acabam ou se perdem pelo tempo e espaço.

Eu fiz as pazes com as minhas opções de trabalho, com o fato de ter estudado uma coisa e trabalhar sempre em outras coisas. Eu fiz as pazes com a minha orientação sexual, e com a minha vontade de gritar e lutar para que todos também possam conseguir isso.

Eu fui idiota, muitas vezes. Eu falei o que não devia, muitas vezes. Escutei o que não queria. Eu fui cínica, como fui nos outros anos, mas fui sincera, como fui poucas vezes.

A mesma amiga da mensagem, há coisa de um mês, me mandou outra: "Cê tá apaixonada né?". E depois: "Tá reclamando menos das coisas em geral". E é assim que termino 2016, sem muitas reclamações, porque acho que cresci, que melhorei, porque minha vida, pela primeira vez, está menos bagunçada que minha mesa de trabalho, e também porque estou com olhos -e boca, e nariz, e mãos e tudo mais- que amam.


terça-feira, agosto 02, 2016

Primeira infância

Aos 11 anos, eu acreditava piamente que aos 18 anos eu seria uma adulta e viveria o que, naquele tempo, eu acreditava ser uma vida adulta, ou seja, moraria numa casa que não fosse a dos meus pais, sozinha, pagando minhas contas e trabalhando. Eu devia ser muito ruim de contas então. E ruim de realidade e conjuntura.
Aos 18 anos, eu estava começando, pela segunda vez, o primeiro ano de faculdade, após abandonar o curso que escolhi aos 17. Morava na casa dos meus pais e não tinha nenhuma fonte de renda, é claro.
Levou mais dez anos até que eu pudesse ser capaz de bancar uma casa sozinha e pudesse, assim, sair da casa dos meus pais e pagar minhas contas. Mas e a vida adulta?
Eu não percebi em que momento a minha ideia do que é ser adulta e viver uma vida adulta mudou, mas a verdade é que agora, prestes a completar 29 anos, trabalhando todos os dias, num emprego com carteira assinada, décimo terceiro, férias, recolhendo impostos, declarando IRPF todos os anos, eu não sei o que é ser adulta. Eu não faço a menor ideia do que é ser uma pessoa adulta.
Eu não consigo me olhar no espelho e achar que sou adulta. Não consigo andar na rua e me perceber como adulta, olhar minhas roupas no armário e pensar que sejam roupas adultas.
O estranho é que eu consigo olhar para algumas pessoas e reconhecer nelas um adulto, mas pensando muito bem, não sei o que nelas me diz que sejam adultas.
Eu passei mais de 20 dias na China, sozinha, e não achei nem por um segundo que eu fosse adulta.
Aos 22 anos eu me mudei para a França por uma temporada. Foi a primeira vez que andei de avião na vida, de mala e cuia e cadernos e livros para um país desconhecido. Visto, abertura de contas no banco, cozinhar, lavar, limpar, deitar na cama numa casa sem uma família, sem uma mesa de jantar, sem uma televisão com o jornal das oito. E eu não achei que fosse adulta.
Eu lavo meu banheiro, minhas roupas, estendo, recolho, dobro, guardo, faço feira, vou ao mercado, compro flores, arrumo a casa, pago aluguel, pago a terapeuta, checo a data de validade, passo o crachá na firma, pago almoço com Sodexo, tenho plano de saúde e carteirinha do SUS, uso óculos para ver letras miúdas de perto, assisto à novela das nove. O que falta para ser adulta?