domingo, dezembro 22, 2013

Azul é uma cor quente

Quadro da HQ "Le bleu est une couleur chaude", de Julie Maroh
     É sempre um erro comparar um filme com o livro no qual ele é baseado esperando que a versão para o cinema seja tão boa quanto a obra literária ou que seja extremamente fiel a ela.
     Não tem como fugir da frustração que acomete quem vê um filme já tendo lido o livro. O cinema e a literatura nos levam a sonhos muito diferentes.
     Eu já tinha lido os três primeiros livros de Harry Potter quando ele foi adaptado ao cinema. Eu tinha o meu Harry Potter, magricela, de óculos e talz, e que se parecia um pouco com o desenho simples da capa do livro. Desde o primeiro filme, meu Harry se transformou em Daniel Radcliffe e os livros não eram mais habitados por aquele garoto único da minha imaginação, mas pelo ator do cinema, que ia crescendo comigo.
     É sempre assim. E quando o caminho é o contrário, é inevitável imaginar os personagens do livro como os atores da adaptação que você já viu e, assim, algo se perde. Então, quando fui ler "Anotações sobre um Escândalo" de Zoë Heller, é óbvio que enquanto lia, ganhavam vida numa história um pouco diferente Cate Blanchett e Judi Dench como Sheba e Barbara, que tinha muito mais sarcasmo no livro do que ganhou no cinema.
     E foi assim também com "Gabriela Cravo e Canela", que era a Juliana Paes que via na TV à noite. Se tivesse lido antes, teria sido, talvez, Sonia Braga.
Clémentine está obcecada pela garota de cabelo azul
     E eis que mesmo ciente disso tudo, de toda essa introdução, resolvi comentar o filme "Azul é a Cor Mais Quente" à luz da história em quadrinhos que o inspirou, de Julie Maroh.
     De certa forma, me arrependo de ter lido a HQ antes de ver o filme. Fiquei muito frustrada por ver que no cinema a história perdeu uma coisa muito importante: seu início triste. (Spoiler a partir daqui.)
     O pano de fundo da HQ, ou seu sentimento geral, é o luto. No começo da história Clémentine, ou Adèle no filme, já está morta. Emma, que é sua companheira, vai à casa dos pais de Clémentine para ler seus diários e a história se desenrola a partir desses relatos de uma garota que já morreu.
     Essa morte sequer existe no filme, que se transforma na história de uma outra perda: Adèle perde Emma com o fim do relacionamento. O filme é a história, assim como a HQ, de um encontro e de um fim, mas esses fins são muito diferentes e geram sofrimentos muito distintos.
     Além disso, que já é muito, há um sequência que o filme excluiu e que diz muito sobre a personagem principal: a de quando os pais de Clémentine-Adèle descobrem que a filha está "saindo" com uma mulher. Não sei se foi cortada do filme, mas tenho essa impressão, porque Adéle vai morar com Emma do nada, não sabemos o motivo e de repente lá está ela. Na HQ ela é expulsa de casa por estar em um relacionamento lésbico. Kechiche tirou isso mas fez questão de marcar a diferença social e intelectual entre os pais de Emma (bobôs) e os de Adèle (classe média conservadora que acha que uma mulher artista plástica tem que casar com homem rico para sobreviver). Cabe ao espectador apenas prever o motivo de sua saída de casa, baseado no comportamento dos pais em um jantar.
     É claro que não dá para ser fiel a um livro em um filme de duas horas. Porém, "Azul" é uma HQ e curta, passível de ser vertida ao cinema como "Persépolis", e virou um filme de três horas. E aí está Kechiche, o diretor do filme e Ghalia Lacroix, responsáveis pela adaptação do roteiro. Eles partiram de um quadrinho e fizeram cinema, dos grandes.
     "Azul", o filme (A Vida de Adèle no original), tem uma ambientação que em nada lembra o luto da HQ, ao contrário, ele é pura luz. A naturalidade sem maquiagem e de cabelo bagunçado de Adèle Exarchopoulos (a dentucinha, pronto falei) e da Léa Seydoux (eterna bela Junie) ajudam a construir uma narrativa realista (o Adèle do título, nome da atriz na vida real, já antecipa isso) de câmera próxima, invasiva e na qual as cenas de sexo aparecem como perfeitamente plausíveis e necessárias no enredo.
     No mais, sobre as polêmicas, para quem disse por aí, ao redor do mundo, "ah, mas não é assim que as lésbicas transam", só digo isso: ALTO LÁ! Baby, como você sabe como as lésbicas todas transam? Já pegou todas? Quando se trata de sexo, cada um faz do jeito que quiser. Eu também nunca fiz daquele jeito, mas nada daquilo é impossível de se fazer (aliás, bem mais fácil que muita coisa do kama sutra), e negar essa possibilidade também tolher a liberdade das pessoas. Agora toda lésbica tem que trepar igual?
     Outra: tem gente dizendo por aí que o grande mérito do filme é contar uma história universal, uma história de um relacionamento que poderia ser hetero ou gay, tanto faz. As histórias de sertão de Graciliano Ramos e de Guimarães Rosa ultrapassam aquele ambiente e são universais. Bergman fala a todos, não só aos suecos. Arte é assim gente, se faz entender e toca universalmente. Mas dizer que o grande mérito do filme é ele poder também ter funcionado se fosse uma história de um casal heterossexual é negar sua especificidade. Não é muito longe de dizer que uma mulher exerce bem sua função em dado escritório porque trabalha como um homem. É também preconceito.
     Esse é um filme gay. É um filme sobre uma adolescente que se descobre com um desejo enorme, que ela não consegue conter, por uma mulher. Nisso a cena em que Adèle sonha com Emma (de quem ela ainda não sabe o nome) acariciando-a sexualmente e acorda suada é exemplar. É uma cena extremamente gráfica e linda e tocante na HQ (acima) e que Kechiche conseguiu transportar para o cinema cheia de tensão e tesão.
     Diferente de muitos dos filmes sobre jovens casais de mulheres, aqui não é uma amizade que se transforma em sexo, porque garotas têm relações próximas que às vezes se confundem com preferência sexual mas que depois se revela apenas uma fase, como em "Meu Amor de Verão", com a Emily Blunt. "Azul" é a história de uma paixão extremamente física que se acende em um mero olhar na rua, é desejo, é sexo e também será amor. Após anos separadas, Adèle encontra Emma e tenta desesperadamente tocá-la. Aquilo que viveram não foi uma fase. É amor. É fogo e paixão.

Emma e Adèle no filme "Azul é a Cor Mais Quente"


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