segunda-feira, setembro 22, 2014

O tempo dos outros

Assistir aos filmes de Tsai Ming-Liang nunca é tarefa fácil. Ver "Jornada ao Oeste" (Xi you), que está na programação do Indie Festival deste ano, é tarefa ainda mais difícil do que ver seus filmes, diria eu, narrativos. O novo filme do malaio-taiwanês está mais próximo de seu quase-não-visto por aqui "Visage", de 2009, do que de "Cães Errantes", ainda que tenham dito que o filme de 2013 fosse o seu mais radical. A meu ver, tanto "Visage" quando "Jornada" não são propriamente peças de cinema, mas sim espécimes da vídeo-arte, mas não sei se Tsai concordaria comigo. Ainda assim, fico feliz de ter assistido ao filme numa sala de cinema e não numa dessas desconfortáveis salas de museus e galerias dedicadas aos vídeos. (Aliás, seria ótimo se de vez em quando vídeos fossem exibidos no cinema, assim seria possível prestar mais atenção neles).
Lee Kang-Sheng e Denis Lavant em cena de "Jornada ao Oeste"
A sala do Cinesesc estava cheia, praticamente lotada, mas cerca de um terço das pessoas abandonou a sessão ao longo dos 56 minutos do filme. E o mais interessante foi ver como o tema do filme ecoou naquela sala de cinema de São Paulo. No filme, nada acontece. São longas sequencias do deslocamento de um (imagino) monge budista vestindo vermelho vagarosamente pela cidade de Marseille, isso após uns quase 10 minutos de close no rosto de um homem, este ocidental, com olhos pensativos prestes a chorar.
Se em um filme com explosões e cenas de sexo e pancadaria o pessoal nas salas de cinema já não consegue mais desgrudar do celular, imagina em um filme com longas sequencias em que praticamente nada acontece? Após uns oito minutos as pessoas não se aguentavam em seus próprios corpos. Começou aquele mexe-mexe, gente dando um tossida, mexendo na cadeira, pegando algo na bolsa, bebendo água, pegando uma bala. Quase ninguém conseguiu aceitar o desafio do filme: encarar aquela imagem. O efeito que o monge causou sobre aquelas pessoas naquela cidade andando pausadamente (cerca de 30 segundos para dar uma passada, uns 10 minutos para descer uma escada) não foi muito diferente do efeito do filme sobre os espectadores do cinema. O tempo incomoda. Temos cada vez mais dificuldade de encarar o tempo simplesmente passando.
Denis Lavant em cena de "Jornada ao Oeste"
Por que deixar a sala? Você já não havia reservado um tempo de seu domingo para ver este filme? Acha que é tempo perdido contemplar um homem desafiando o tempo? É claro que muitas leituras são possíveis do filme, sendo ocidente versus oriente a mais clara delas. O tempo e a paciência de uma certa "espirituosidade" oriental contra a pressa tecnológica ocidental. Mas Tsai parece ter conseguido expandir essas questões para uma obra na qual o embate se dá entre arte e uma certa fruição da arte, por parte da plateia, despreocupada e preguiçosa. Tsai é exigente, ele quer dedicação, empenho e esforço do lado de cá.
O resultado é um filme com belas cores, belas imagens, mas que deixa inquieto, dá aquele comichão, simplesmente porque nos faz ficar parados, olhando, olhando, esperando, dando tempo ao tempo deste monge que veste um vermelho vivo contra uma cidade de pedras.
E o filme se encerra com algumas frases, que aparecem escritas na tela com a bela caligrafia dos ideogramas chineses. A última frase do filme sem falas é:
"Todas as existências estão condicionadas ao olhar."