segunda-feira, setembro 18, 2017

Minhas férias

"Minha nudez já é estranha para mim. Meu corpo parece fora de época. Será que realmente usei trajes de banho, na praia? Usei, sem pensar, entre homens, sem me importar que minhas pernas, meus braços, minhas coxas e costas estivessem à mostra, pudessem ser vistas". O Conto da Aia, de Margaret Atwood

Quando li a passagem acima, logo grifei e marquei "Irã".

Uns quatro dias após chegar no país, em abril, me vi nua num espelho comprido que havia diante do chuveiro. Fiquei em choque. Depois de poucos dias usando véu e abaya, já achei a minha nudez estranha. Aquele cabelo, aquele colo, aqueles seios, eram os meus?

Dias depois, quando alguém do Brasil me mandou uma foto de amigos no bar, meu olhar foi diretamente para o decote de uma moça com seios fartos. O que estava acontecendo com meu cérebro?

Antes de ir ao Irã eu pensei: ok usar o véu, são apenas alguns dias. No terceiro dia, eu estava cansada de ter que controlar se minha franja saía por baixo do véu, se eu não levantava as mangas da camisa, por instinto, por conta do calor. O que mais me incomodava era ter de usar o véu o tempo todo, ter de lembrar de colocá-lo ao sair de casa, mantê-lo ao comer, ao viajar confortavelmente num avião ou num ônibus.

No quinto ou sexto dia, eu já me incomodava com o fato de estarmos eu e minha amiga, companheira de viagem, julgando as vestes de outras turistas. "Isso não está muito curto?". "Nossa, quanta franja aparecendo". Tínhamos prontamente nos tornado fiscais de regras com as quais não concordávamos.

Jardim Eram, em Shiraz
Em 2015, eu viajei à China. Eu queria conhecer um país completamente diferente do meu, uma cultura distante e milenar. Voltei achando que aquilo era o mundo de ponta-cabeça. Nos últimos dias da viagem eu estava odiando tudo. Quando voltei, me dei conta de que o que eu odiei foi a solidão. Estar num país tão diferente sozinha me obrigou a conviver comigo mesma mais do que jamais consegui, ou fui obrigada a. Para o Irã, resolvi viajar acompanhada. Descobri que era fundamental para mim ter com quem conversar num lugar em que não entendo ninguém nem nada e que quase ninguém me entende. 

Resolvi dar um tempo à reflexão antes de escrever sobre minha experiência no Irã porque uma viagem sempre se resignifica com o tempo, e não queria ser injusta com um país tão lindo e no qual fui tão bem acolhida.

O Irã é um país maravilhoso. Há paisagens estonteantes. Há uma história de cair o queixo. Uma Grécia no Oriente Médio, com muito deserto. Uma grande civilização, fundadora da humanidade.

Ali, com ajuda da grande ideia que é o Couchsurfing, Elsa (minha amiga com quem viajei) e eu fomos recebidas nas casas das pessoas, fomos levadas a mercados, lojas e restaurantes, nos explicaram e nos ajudaram. Com os iranianos que conhecemos, pudemos até ser "foras da lei". 

Primeiro porque o Couchsurfing é proibido no país, com o acesso vetado, só é possível se conectar a ele usando um VPN (assim como o Facebook e diversos conteúdos da internet). Depois, porque essas pessoas confiaram em nós. Um casal dividiu com a gente um pouco de seu vinho caseiro. Beber, vender e produzir bebidas alcoolicas no Irã é proibido. Um iraniano nos deixou assistir a canais ilegais, tendo acesso a programas feitos por iranianos para iranianos fora do Irã. Ter antenas e sintonizar canais da Turquia, Armênia e arredores também é proibido. Um jovem iraniano muito engraçado tocou para nós, enquanto nos dava uma carona em seu carro, música cantada em farsi por mulheres e nos incentivou a dançar. Dançar em público no Irã é ilegal, para homens e mulheres. Mulheres cantarem e gravar a voz feminina em farsi também é ilegal.

A surrealidade de tantas regras, quebradas a todo o tempo pelos iranianos, se tornou evidente num dos diálogos mais tristes que tivemos ali. Em Yazdi, cidade pequena e turística, um homem nos parou na rua e quis saber de onde éramos (isso era bastante frequente em todos os lugares, com exceção de Teerã). Pouco se importou com o fato de eu ser do Brasil (fato raro, normalmente evocam jogadores de futebol entusiasticamente), e se concentrou em elogiar a França, país de Elsa. "Oh, Paris, beautiful. Champs Elysées, beautiful. Tour Eiffel, beautiful". Fez cara de triste. "France, dance. Here, no dance". E fez o gesto com a mão, dedo em riste, de negativa.

Mausoléu de Shāh Chérāgh, em Shiraz

Nos guias que li antes da viagem, diziam que os iranianos adoram convidar estrangeiros para comer em suas casas, e até mesmo para pernoitar. Tivemos de recusar alguns desses convites. Talvez por sermos mulheres, eles não foram tão numerosos assim. Era difícil, em algumas regiões e bairros, até mesmo conseguir ajuda sobre direções, já que se pressupõe que mulheres não dirijam a palavra a homens sem que os homens comecem a conversa e, na maioria das vezes, as mulheres que encontrávamos ou não sabiam inglês ou eram muito tímidas ou tinham algum receio de falar com a gente.

Mas num parque em Isfahan tivemos de recusar o convite de uma família numerosa e falante (embora apenas um dos filhos falasse inglês), que queria muito que fossemos ficar em sua casa. Nos apresentaram todos, irmãos, tios, primos, nos mostraram os livros escolares das irmãs. As mulheres sorriam, nos olhavam curiosas. Numa praça, ganhamos morangos. E Elsa, ao dizer que uma das garotas do pic-nic (esporte nacional iraniano) estava muito cheirosa, ganhou uma borrifada em seu pescoço do perfume que ela usava.

Eu me senti segura o tempo inteiro em que estive no Irã e raramente desconfiei das intenções das pessoas. Eu comi muito bem, tudo era delicioso e bem temperado. O país é limpo, organizado e os iranianos parecem ter um olhar cuidadoso sobre a beleza das coisas. Qualquer praça de qualquer lugar era cuidada como se fosse o jardim de um rei.

Porém, o desconforto, até mesmo visual, com a situação das mulheres me faz pensar que não quero voltar para lá. Num calor seco e extenuante, me dava desespero estar com um véu cobrindo minhas orelhas e pescoço. Enchia-me de desespero ainda maior ver mulheres andando por aí com grandes panos pretos cobrindo todo seu corpo. 

Durante toda a viagem, e desde então, eu tenho me esforçado para compreender o que se passa naquele país. Algumas pessoas me disseram: ah, mas o Brasil também é machista, talvez até mais. Concordo que o Brasil seja machista, jamais negaria isso. Mas o relativismo tem seus limites. Entendo também que quase tudo do que me pareceu incompreensível se explica pela religião, pela crença e pela fé. Porém, existe uma diferença entre os demais países de maioria islâmica e o Irã, existe uma diferença entre os muçulmanos em Paris e em Teerã, existe uma diferença entre o Brasil e o Irã: a institucionalização. A lei religiosa no Irã é a única lei. A constituição do país é a lei islâmica. Ali, não existe escolha. Ali, a liberdade, se é que ela existe, ganha contornos bem espessos. No Ocidente, queremos defender que as mulheres muçulmanas possam sim usar seus véus nas ruas e escolas, mas no Irã eu, uma ateia, ou Elsa, uma protestante de origem huguenote, não podíamos comer descobertas, não podíamos mostrar nossos cabelos nem nossas orelhas. Ali, uma iraniana não pode não usar o véu.

"A humanidade é tão adaptável, diria minha mãe. É verdadeiramente espantoso as coisas com que as pessoas conseguem se habituar, desde que existam algumas adaptações". Atwood, de novo

domingo, julho 30, 2017

Sapeca iáiá

Minha vó foi copeira, arrumadeira e babá em casa de gente "muito chique", como ela conta. Trabalhou na rua Bahia, em Higienópolis, na alameda Barros, e na Condessa de São Joaquim.

Hoje, fomos almoçar num restaurante chiquetoso em frente à Praça Buenos Aires, onde ela costumava passear aos domingos quando trabalhava só até depois do almoço.

Ela me contou de uma foto que tirou ali na praça, vestindo uma saia preta longa de seda, que sua patroa tinha trazido para ela da Itália. Ela falou das roupas que usava: sempre de saia, luvas, vestidos elegantes. "Ninguém achava por aqui que eu fosse doméstica". 

"Era uma beleza morar no trabalho. Eu tinha um quarto todo bonito, banheiro com banheira só para mim." Ela diz que gostava de ser babá e de ser copeira, porque os doces eram todos feitos na copa. Ela fazia pudins e bolos. E passava os panos de centro de mesa das patroas, que não podiam ter nem sequer uma ruguinha. Não gostava de ser arrumadeira, engraxar os sapatos dos patrões e polir as maçãs que iam na fruteira da sala.

A patroa da rua Condessa de São Joaquim, era ateia, minha vó contou. Ela era babá da filha dessa mulher quando se casou. A patroa foi na igreja no dia do casamento, que foi na antiga igreja da Penha. "Mas ficou só na porta, não entrou porque era ateia." Minha vó parou de trabalhar em casa de família. A menina ficou doente de saudades da babá. "Mal sabia a mulher que eu sempre levava a filha dela para as igrejas ali da Liberdade e ensinava ela a rezar."

Nesse momento, já estávamos almoçando, ela pediu que eu acreditasse em deus. Que eu devia ter fé. Desviei do assunto, nem lembro como. 

No Jardim da Luz, que, assim como a praça, para ela, agora está feio, sujo e malcuidado, ela me contou da sua vizinha que a chamava para passear por lá. "Ela vivia me chamando para vir aqui no Jardim da Luz. Ela vinha sozinha, de ônibus, e passava o dia aqui procurando homem." A vizinha viúva chamava minha vó, também viúva, para ir passear no jardim em busca de homens prum "sapeca iá iá". Nessa hora, quase morri de rir. Não conhecia a expressão. "Safada ela era. Tinha um foooooogo aquela mulher." Dois homens passaram cantada na minha vó no nosso passeio no parque. 

Fiquei satisfeita com a história dessa vizinha, muito mais feliz do que as anteriores que ela tinha contado envolvendo homens. Certa vez, passeando no cemitério da Consolação em dia de folga quando era copeira em Higienópolis, um homem saiu correndo atrás dela com o pau pra fora. O dentista no qual ela ia, pago pela patroa da São Joaquim, tentou estupra-la uma vez. Ela fugiu correndo e gritando. "É por isso que eu falo: tem estupro sim, tem médico que estupra as pacientes."

Eu ofereci de refazer o retrato que minha vó tinha tirado na Praça Buenos Aires e que hoje se perdeu. Ela disse que não. Que não gosta de ser fotografada. Que naquele retrato ela estava linda, tinha 19 anos. De saia, cabelos compridos e sem óculos. Eu consegui um selfie do Jardim da Luz, para onde fomos mais tarde. Ela continua linda.

sexta-feira, julho 28, 2017

Bela Cintra, 221

No carro, paradas no semáforo, minha avó olha para mim e fala. "Vou te falar uma coisa. Você pode achar que é besteira, mas eu queria tanto sonhar com seu avô. Eu queria poder perguntar se onde ele está, ele está bem, se ele sente dor, saber como ele está."

E então, pela primeira vez, eu confessei a ela. "Eu sonho muito com o vovô, vó." 

Eu queria dizer para ela: deixa que eu pergunto. Mas achei que seria falso. Eu não faria isso, porque para mim não faz muito sentido. Mas eu torço para que ela consiga sonhar com ele.

Então eu expliquei para ela que meus sonhos com o vô são do passado, na vida que ele tinha aqui, com a casa dele, as roupas dele, na cidade em que ele morava.

Essa minha vó é uma grande contadora de histórias. São histórias de sua vida. Reais ou inventadas, para mim pouco importa. Se reais, impressiona pela maldade das pessoas. Se imaginadas, o que impressiona é a capacidade de criação da minha vó.

E ela não apenas narra as suas histórias. Ela atua. E nesse dia, ali na sala da minha casa, ela caminhou até a porta da cozinha, ficou bem ereta e imitou seu pai chegando em casa. "Pa-pa. Ele usava botas grandes, e batia um pé depois do outro quando chegava na porta. Pa-pa." E fez o gesto descrito.

E ela imitou minha bisavó --sua sogra--, sua madrasta (as melhores histórias envolvem essa mulher, que se fingia de mãe), suas irmãs. Encenou a fuga de sua mãe da fazenda --digna de novela das seis--, sua vida na fábrica de televisões e rádios na Vila Maria, sua adolescência regrada pelo pai e seu casamento.

O pai, chocado com os cabelos curtos e calças compridas que ela usava dois dias depois do casamento, ao qual ele não foi, ouviu da vizinha, minha bisavó: "O senhor aí não manda mais, agora quem manda é meu filho". 

As histórias se repetem. Algumas já não sei mais quantas vezes ouvi, e vi. Mas outras, ela parece contar sem querer. Elas parecem escapar. São as histórias secretas. Inéditas.

Dessa vez, ela falou do restaurante que sua avó tinha. Na rua Bela Cintra.

Depois, ela me contou que quase nunca se lembra daquilo com que sonha. Talvez ela sonhe com meu avô. E até faça as perguntas que tanto quer fazer. Não se lembra das respostas. Uma pena que não se lembre dos sonhos. Se acordada conta histórias tão incríveis, imagina sonhando.