sexta-feira, março 28, 2008

::Coca Cola Blues::


Abre a porta. Fecha a porta. Caminha então pelo curto corredor até a sala sem cortinas iluminada pelas lâmpadas incessantes dos prédios e bares da cidade que não fecha seus olhos.
A embalagem prateada de Marlboro cintila na escrivaninha, a lua pequena de verão se esconde por trás das nuvens cheias de garoa fina. Os pés descalços andam até a cozinha, o corpo quente abre a geladeira, a angústia se encontra numa garrafa de Coca-Cola.Enche um copo de boca larga do líquido que explode bolinhas de gás em sua superfície, um espetáculo de fogos de artifício em miniatura.
Agarra o copo suado como quem se segura num ônibus fazendo uma curva fechada em alta velocidade.Volta à sala, fita mais uma vez os cigarros, olha ao redor em busca de um isqueiro, pensa nos pulmões apodrecidos, nos fetos abortados, nos cânceres de língua, garganta, bexiga, estômago, pensa na impotência - grande ironia! Finalmente abre a caixinha, puxa um símbolo sexy clássico de filmes e fotografias e séries, de filtro amarelo, coloca na boca, sente-se uma grande estrela, Rita Hayworth, senta-se na poltrona.
A
sala tem duas janelas paralelas entre si, os sons e as luzes entram e saem constantemente, infindavelmente, como se o exterior atravessasse a sala de ponta a ponta, cravando a realidade naquilo que podia ser apenas alucinação.
O que fode é a lucidez, a sobriedade, o retorno à percepção de que a dor é real.
Ela dá uma tragada profunda, solta a fumaça envenenada pelo nariz e enfrenta um enorme gole da Coca-Cola. Há alguns minutos tocava Bob Dylan, o que aconteceu? Para onde se esvaiu aquela voz anasalada que ouvira desde o quarto?
O cigarro dura seis ou cinco tragadas. A queimação do refrigerante descendo com seus pequenos rojões pela garganta só antecipa o efeito que mais tarde terá sobre uma gastrite, e assim também a enxaqueca terá seu gatilho preferido. Seria melhor que tivesse tomado as anfetaminas e a cerveja. Mas esse é o seu modo de sentir-se por dentro, provocando as doenças adormecidas para se lembrar de sua própria existência.
Cogita dormir o resto da noite ali mesmo, na poltrona quadrada de 1x1m. Fuma até chegar ao filtro, deixando o gosto de fuligem, coloca o resto do resto no cinzeiro, o copo vazio no tapete e se encolhe.
O desalento aumenta quando da tentativa de diminuí-lo no ato de encolher-se, como se sua mãe fosse vir beijar-lhe os cabelos e dizer que tudo ficará bem, ela fecha os olhos apertando-os com toda a força. Abre-os e se dá conta de que esperava estar em outro lugar quando os abrisse. Percebe que no amanhecer a sala ficaria irritantemente clara, o que a faria acordar daqui umas três horas.
Resolve tentar assim mesmo, imagina possíveis sonhos que seriam agradáveis. Não dorme. Revira-se. Estica uma perna, estica outra, coloca a cabeça no braço da poltrona e os braços tampando os olhos. O tempo não tem fim. O tempo não tem fim. Suspira. O tempo não tem fim.
E ela queria ser a garota de alguém, não como propriedade, não se pode ser dona do que não tem preço.

::Xeroftalmia::


Um amigo (http://www.jackaseltov.com/) disse: "Não se chora de vermelho, de vermelho mata-se, de vermelho morre-se".
Hoje saí de casa vestindo vermelho.

::Mote::


A vida que podia ter sido e que não será.

terça-feira, março 25, 2008


Ne me quitte pas - Jacques Brel

Ne me quitte pas
Il faut oublier
Tout peut s'oublier
Qui s'enfuit deja
Oublier le temps
Des malentendus
Et le temps perdu
A savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
A coups de pourquoi
Le coeur du bonheur
Ne me quitte pas

Moi je t'offrirai
Des perles de pluie
Venues de pays
Où il ne pleut pas
Je creuserai la terre
Jusqu'apres ma mort
Pour couvrir ton corps
D'or et de lumière
Je ferai un domaine
Où l'amour sera roi
Où l'amour sera loi
Où tu seras reine
Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
Je t'inventerai
Des mots insensés
Que tu comprendras
Je te parlerai
De ces amants là
Qui ont vu deux fois
Leurs coeurs s'embraser
Je te racont'rai
L'histoire de ce roi
Mort de n'avoir pas
Pu te rencontrer
Ne me quitte pas

On a vu souvent
Rejaillir le feu
De l'ancien volcan
Qu'on croyait trop vieux
Il est paraît-il
Des terres brûlées
Donnant plus de blé
Qu'un meilleur avril
Et quand vient le soir
Pour qu'un ciel flamboie
Le rouge et le noir
Ne s'épousent-ils pas
Ne me quitte pas

Ne me quitte pas
Je ne vais plus pleurer
Je ne vais plus parler
Je me cacherai là
À te regarder
Danser et sourire
Et à t'écouter
Chanter et puis rire
Laisse-moi devenir
L'ombre de ton ombre
L'ombre de ta main
L'ombre de ton chien
Ne me quitte pas


Empty - The Cranberries

Something has left my life,
And I don't know where it went to,
Somebody caused me strife,
And it's not what I was seeking.

Didn't you see me, didn't you hear me?
Didn't you see me standing there,
Why did you turn out the lights?
Did you know that I was sleeping?

Say a prayer for me,
Help me to feel the strenght, I did.
My identity, has it been taken?
Is my heart breakin' on me?

All my plans fell thought my hands,
They fell thought my hands on me.
All my dreams it suddenly seems,
It suddenly seems,
Empty

domingo, março 23, 2008

Numa pintura de Edward Hopper





Pinturas de Hopper:
Eleven Am
Summer Interior
Hotel Room

domingo, março 16, 2008

::Mosh (ou Sobre a possibilidade do retorno ás mascaras quando da chegada das primeiras larvas)::


Advertência: esse texto não é uma carta aberta, e sim uma bola de pêlo.

Eu, a que não me entregava.
Eu, a que não corava.
Eu, a que não me mostrava nua e crua.
Eu, a definida pelas negativas.
Um passo em falso e me apaixonei. Nunca amamos se não estivermos desprevenidos, o amor nos pega de surpresa em seus imensos braços monstruosos e peludos e nos arrasta pelos cabelos até sua caverna, onde revezaremos entre a diversão e a tortura.
Eu então tirei a roupa para ela, toda ela, inclusive as meias, e me entreguei. Levei as mãos ao alto, nua em pêlo e caminhei lentamente sem medo até a beira do abismo, deixando-lhe o poder de me segurar ou me dar um empurrão. O vento batia e eu arrepiava, o sol ardia e eu queimava.
Eu, a que não me entregava.
Eu, a que não corava.
Eu, a que não me mostrava nua e crua.
Sem defesas, transformei-me. À la Gregor Samsa metamorfoseei-me a ponto de não mais me reconhecer. Só havia uma maneira de me ver, de me encontrar, apenas vendo meu reflexo nos olhos dela. Mais importante passou a ser como ela me via do que minha imagem diante de mim num espelho. E isso não me abala. Eu era o que para ela sou. Não é isso o amor?
Eu queria poder querer gritar, xingando, mandá-la tomar no cu e ir se foder. Virar as costas às escarpas e jogar-me, pelo menos um último ato que talvez nada dela contivesse.
Mas quem sou eu agora que vejo seus olhos fechados? Não sei mais quem sou.
Eu, a que não me entregava.
Eu, a que não corava.
Eu, a que não me mostrava nua e crua.
Vejo-me barata estendida no chão com as patas viradas para cima sem conseguir colocá-las para correr. Agonizo. Vagarosamente as primeiras larvas vêm se arrastando e não há sequer chinelos por perto - entreguei-me sem sequer um mata-moscas.
Abandonada, enlouqueço, sentindo cada mordida pequena e doída das miúdas larvas moles e brancas de olhos vermelhos.
Eu grito!
Eu choro!
Eu imploro!
Eu
...
imploro!
E sua silhueta que se desenha sob a luz cruza os braços e permanece de olhos fechados, negando-me meu eu.
Se abre os olhos talvez os invadam poeira, se descruza os braços talvez lhe sejam muito pesados. Leva tempo para se acostumar com o asco causado pelas baratas. O asco gerado pelo medo de se transformar em uma.


::My headphones saved my life::


Duvet - Boa

And you don't seem to understand
A shame you seemed an honest man
And all the fears you hold so dear
Will turn to whisper in your ear
And you know what they say might hurt you
And you know that it means so much
And you don't even feel a thing

I am falling, I am fading,
I have lost it all

And you don't seem the lying kind
A shame then I can read your mind
And all the things that I read there
Candle lit smile that we both share
And you know I don't mean to hurt you
But you know that it means so much
And you don't even feel a thing

I am falling, I am fading, I am drowning,
Help me to breathe
I am hurting, I have lost it all
I am losing
Help me to breathe


terça-feira, março 11, 2008



Entre por essa porta agora

E diga que me adora

Você tem meia hora

Pra mudar minha vida

Vem vambora

Que o que você demora

É o que o tempo leva





You are a china shop
and I am a bull

you are really good food

and I am full

I guess everything is timing

I guess everything's been said

so I am coming home with an empty head
(...)
you'll say it's really good to see you

you'll say I missed you horribly

you'll say let me carry that

give that to me

and you will take the heavy stuff

and you will drive the car

and I'll look out the window making jokes

about the way things are





Eu desço dessa solidão
Espalho coisas sobre

Um Chão de Giz

Há meros devaneios tolos

A me torturar






São só palavras: teço, ensaio e cena
A cada ato enceno a diferença

Do que é amor ficou o seu retrato

A peça que interpreto

Um improviso insensato

Essa saudade eu sei de cor

Sei o caminho dos barcos

E há muito estou alheio a quem me entende

Recebe o resto exato e tão pequeno

E dor, se há - Tentava, já não tento






It's the kind of night that's so cold, when you spit
It freezes before it hits the ground

And when a bum asks you for a quarter, you give a dollar

If he's out tonight he must be truly down

And I'm searching all the windows for a last minute present

To prove to you that what I said was real,

For something small and frail and plastic, baby,

'cause cheap is how I feel
Half moon in the sky tonight, bright enough
To come up with an answer

To the question why is it that every time I see you

My love grows a little stronger

But your memory leaves my stomach churning,

Feeling like a lie about to be revealed,

But I'll horde all this to myself

'cause cheap is how I feel






All that I know to be true
Is the touch of your hand on my skin.

One look from you can so easily soothe

All this turmoil within
As we dance cheek to cheek
With our feet so completely

Locked in a time all our own.

I stop to speak

But you gently keep me

Moving in time to the song.

And in a voice that is sloppy with gin

You say, "let the world spin."






The silence of a falling star
Lights up a purple haze

And as I wonder where you are

I'm so lonesome I could cry






Escape is so simple
In a world where sunsets can be raced

But distance only looses the knife

The pattern of its scar

Can always be traced






Electric shocks?
I love them!

With you --> dozen a day

But after a while I wonder

Where's that love you promised me?

Where is it?

Possibly maybe probably love, possibly

Possibly maybe probably love, possibly

How can you offer me love like that?

My heart's burned






It's a hot day
and I'm dressed lightly

I move carefully

through the crowd
here everyone
is so vulnerable

and I'm as well
there's no-one here - and people everywhere CRYING : 'cause I need you
CRYING : I can feel you

CRYING : 'cause I need you

CRYING : 'cause I care





Trechos de:
Vambora - Adriana Calcanhoto
You Had Time - Ani DiFranco
Chão de Giz - Zé Ramalho
Os Barcos - Legião Urbana
'Cause cheap is how I feel - Cowboy Junkies
River Waltz - Cowboy Junkies
I'm so lonesome I could cry - Cowboy Junkies
Escape is so simple - Cowboy Junkies
Possibly maybe - Björk
Crying - Björk

*Imagem: Salvador Dalí, Galatea de las Esferas, 1952.

domingo, março 02, 2008

::Manifesto contra a Insensibilidade::

Por que me diz que sou insensível? Por acaso não sinto você? Sim, eu sinto, e a sensação é ótima.
Eu tenho sensações sim, e sentimentos, das mais extremas, dos mais intensos.
"Caem as máscaras!"
Com você fico de rosto limpo, com a verdadeira face à mostra, por mais que às vezes eu tente escondê-la entre as mãos. E quando isso acontece, desejo que você as arranque da frente, afaste minha timidez e covardia para ver meu eu em carne viva, pulsante, vibrante, desejante e SENSÍVEL.
Sinto meu coração bater mais forte quando vou ver você, quando ouço seu nome, quando recebo um recado seu.
Sinto meu corpo arrepiar ao seu toque, ao seu suspiro, minha respiração falha com o seu beijo, meu corpo pesado flutua ao lado, em cima, ou embaixo do seu.
A Felicidade me invade quando me convenço de que sim, é verdade, você me ama.
E depois de tudo isso, e apesar de tudo isso, você ainda não se convenceu, você ainda não tem certeza, ainda vejo em seus olhos que você não sabe o quanto eu sinto você.

::My headphones saved my life::


I Feel You - Depeche Mode

I feel you
Your sun it shines
I feel you
Within my mind
You take me there
You take me where
The kingdom comes
You take me to
And lead me through
Babylon

This is the morning of our love
It's just the dawning of our love

I feel you
Your heart it sings
I feel you
The joy it brings
Where heaven waits
Those golden gates
And back again
You take me to
And lead me through
Oblivion

This is the morning of our love
It's just the dawning of our love

I feel you
Your precious soul
And I am whole
I feel you
Your rising sun
My kingdom comes

I feel you
Each move you make
I feel you
Each breath you take
Where angels sing
And spread their wings
My loves on high
You take me home
To glorys throne
By and by

This is the morning of our love
It's just the dawning of our love



I've got you under my skin - Frank Sinatra

I've got you under my skin
I've got you deep in the heart of me
So deep in my heart, that you're really a part of me

I've tried so not to give in
I've said to myself this affair never will go so well
But why should I try to resist, when baby will I know than well
That I've got you under my skin

I'd sacrifice anything come what might
For the sake of having you near
In spite of a warning voice that comes in the night
And repeats, repeats in my ear

Don't you know you fool, you never can win
Use your mentality, wake up to reality
But each time I do, just the thought of you
Makes me stop






before I begin
cause I've got you under my skin


::Sábias Palavras::


Mary 'Mouse' Bedford: "How much does it matter what other people think?"
Joe Menzies: "Depends how much they’re paying you, I guess."
(diálogo de Assunto de Meninas)


::Divagações no Escuro::

4 meses, 3 semanas e 2 dias

Impactante!
Mesmo sem agulhas de tricô, a realidade dos abortos ilegais se mostra nesse filme muito distante daquilo que imaginamos no conforto de nossas vidas perfeitas e dentro da lei. Numa posição vulnerável está-se sujeito a todo tipo de humilhação.
A cena em que vemos o feto, acompanhando o olhar de Ofelia, debate-se contra o restante do filme, reforça a idéia de assassinato, não nos deixa esquecer o ato cruel que é tirar um feto de dentro da barriga de sua mãe, mas e a decisão consciente de cada mulher, os riscos que elas enfrentam indo contra uma lei que não diz nada sobre suas vidas reais?
O diretor teve extrema coragem, pois fiquei sabendo por uma entrevista que a história supostamente se passou com uma namorada dele e que ele só ficou sabendo dez anos depois, não sei se sua namorada seria Ofelia ou Gabi, mas encarei o filme como uma tentativa de fazer parte daquilo que foi excluído um dia.
Acima de tudo, encarei o filme como sendo sobre amizade. Por quem você faria o que Ofelia fez por Gabi? Quem faria isso por mim?

Gabi parece uma fracote, tão em choque que perdeu a noção do que está fazendo, alheia, medrosa, desajeitada, a câmera aparenta nem querer conversa com ela. Acompanhamos a amiga decidida, madura, sensível, é com ela que compartilhamos a aflição, é com ela que sofremos.
Com o título sabemos o que possivelmente sequer Gabi sabe: o tempo exato da gestação, até com a precisão de dias.
4 meses, 3 semanas e 2 dias é seco, nem mesmo parece encenado, não ilumina o que não deve, e consegue nos fazer sentir aquilo que as garotas estão sentindo, como o nó na garganta, o desconforto e o estômago revirado ao final, quando decidem nunca mais tocar no assunto.


Venus

Parece fácil fazer papel de si mesmo num filme, como sempre falam de Hugh Grant, por exemplo, mas em Venus não me pareceu um trabalho fácil o de Peter O'Toole.
O'Toole interpreta um ator em suas próprias condições, já muito idoso, mas também interpreta aqueles que devem ser seus próprios medos.
O medo de morrer, a consciência da decadência de seu corpo enquanto a mente ainda tem o vigor necessário para desejar. E será este desejo, como ele mesmo prevê no início do filme, que o levará à angústia, ao desespero e à loucura.
Total insensatez, aos nossos olhos, é o ponto a que Maurice, seu personagem, chega por conta de seu desejo por Jessie, a quem ele apelida de Vênus quando a leva para ver o quadro de Velasquez, A Vênus no Espelho.

Maurice diz, em frente ao quadro, que a coisa mais linda que um homem vê na vida é o corpo de uma mulher, e entendemos que ele, em seus 80 ou 90 anos não quer desistir de ter a visão mais bela que seus olhos podem lhe proporcionar.
Sabemos de suas esquisitices e de sua juventude de galã cafajeste, sabemos que ele abandonou esposa e filhos para viver se bebidas, sucesso e mulheres, mas não podemos achar que só porque está chegando ao fim de sua vida que passou a ser ingênuo, um "velho babão" como Jessie o chama em determinado momento. Eu construí uma simpatia por ele no decorrer da narrativa, certo carinho que se expressava na minha tentativa de entendê-lo ao invés de julgá-lo.
Ele sabe que Jessie está se aproveitando de seu dinheiro e fama,mas não será ele que termina por se aproveitar dela? Ele precisava de sua juventude e energia, de seu cuidado verdadeiro, que ao fim consegue. Ele não é um "velho bobo" e isso faz toda a diferença no filme, ele não é um safado, ele tenta ser sincero e sofre, está desesperado, angustiado, ele luta e não aceita com facilidade o que a sociedade impõe a ele como comportamento de um senhor idoso.