domingo, julho 30, 2017

Sapeca iáiá

Minha vó foi copeira, arrumadeira e babá em casa de gente "muito chique", como ela conta. Trabalhou na rua Bahia, em Higienópolis, na alameda Barros, e na Condessa de São Joaquim.

Hoje, fomos almoçar num restaurante chiquetoso em frente à Praça Buenos Aires, onde ela costumava passear aos domingos quando trabalhava só até depois do almoço.

Ela me contou de uma foto que tirou ali na praça, vestindo uma saia preta longa de seda, que sua patroa tinha trazido para ela da Itália. Ela falou das roupas que usava: sempre de saia, luvas, vestidos elegantes. "Ninguém achava por aqui que eu fosse doméstica". 

"Era uma beleza morar no trabalho. Eu tinha um quarto todo bonito, banheiro com banheira só para mim." Ela diz que gostava de ser babá e de ser copeira, porque os doces eram todos feitos na copa. Ela fazia pudins e bolos. E passava os panos de centro de mesa das patroas, que não podiam ter nem sequer uma ruguinha. Não gostava de ser arrumadeira, engraxar os sapatos dos patrões e polir as maçãs que iam na fruteira da sala.

A patroa da rua Condessa de São Joaquim, era ateia, minha vó contou. Ela era babá da filha dessa mulher quando se casou. A patroa foi na igreja no dia do casamento, que foi na antiga igreja da Penha. "Mas ficou só na porta, não entrou porque era ateia." Minha vó parou de trabalhar em casa de família. A menina ficou doente de saudades da babá. "Mal sabia a mulher que eu sempre levava a filha dela para as igrejas ali da Liberdade e ensinava ela a rezar."

Nesse momento, já estávamos almoçando, ela pediu que eu acreditasse em deus. Que eu devia ter fé. Desviei do assunto, nem lembro como. 

No Jardim da Luz, que, assim como a praça, para ela, agora está feio, sujo e malcuidado, ela me contou da sua vizinha que a chamava para passear por lá. "Ela vivia me chamando para vir aqui no Jardim da Luz. Ela vinha sozinha, de ônibus, e passava o dia aqui procurando homem." A vizinha viúva chamava minha vó, também viúva, para ir passear no jardim em busca de homens prum "sapeca iá iá". Nessa hora, quase morri de rir. Não conhecia a expressão. "Safada ela era. Tinha um foooooogo aquela mulher." Dois homens passaram cantada na minha vó no nosso passeio no parque. 

Fiquei satisfeita com a história dessa vizinha, muito mais feliz do que as anteriores que ela tinha contado envolvendo homens. Certa vez, passeando no cemitério da Consolação em dia de folga quando era copeira em Higienópolis, um homem saiu correndo atrás dela com o pau pra fora. O dentista no qual ela ia, pago pela patroa da São Joaquim, tentou estupra-la uma vez. Ela fugiu correndo e gritando. "É por isso que eu falo: tem estupro sim, tem médico que estupra as pacientes."

Eu ofereci de refazer o retrato que minha vó tinha tirado na Praça Buenos Aires e que hoje se perdeu. Ela disse que não. Que não gosta de ser fotografada. Que naquele retrato ela estava linda, tinha 19 anos. De saia, cabelos compridos e sem óculos. Eu consegui um selfie do Jardim da Luz, para onde fomos mais tarde. Ela continua linda.

sexta-feira, julho 28, 2017

Bela Cintra, 221

No carro, paradas no semáforo, minha avó olha para mim e fala. "Vou te falar uma coisa. Você pode achar que é besteira, mas eu queria tanto sonhar com seu avô. Eu queria poder perguntar se onde ele está, ele está bem, se ele sente dor, saber como ele está."

E então, pela primeira vez, eu confessei a ela. "Eu sonho muito com o vovô, vó." 

Eu queria dizer para ela: deixa que eu pergunto. Mas achei que seria falso. Eu não faria isso, porque para mim não faz muito sentido. Mas eu torço para que ela consiga sonhar com ele.

Então eu expliquei para ela que meus sonhos com o vô são do passado, na vida que ele tinha aqui, com a casa dele, as roupas dele, na cidade em que ele morava.

Essa minha vó é uma grande contadora de histórias. São histórias de sua vida. Reais ou inventadas, para mim pouco importa. Se reais, impressiona pela maldade das pessoas. Se imaginadas, o que impressiona é a capacidade de criação da minha vó.

E ela não apenas narra as suas histórias. Ela atua. E nesse dia, ali na sala da minha casa, ela caminhou até a porta da cozinha, ficou bem ereta e imitou seu pai chegando em casa. "Pa-pa. Ele usava botas grandes, e batia um pé depois do outro quando chegava na porta. Pa-pa." E fez o gesto descrito.

E ela imitou minha bisavó --sua sogra--, sua madrasta (as melhores histórias envolvem essa mulher, que se fingia de mãe), suas irmãs. Encenou a fuga de sua mãe da fazenda --digna de novela das seis--, sua vida na fábrica de televisões e rádios na Vila Maria, sua adolescência regrada pelo pai e seu casamento.

O pai, chocado com os cabelos curtos e calças compridas que ela usava dois dias depois do casamento, ao qual ele não foi, ouviu da vizinha, minha bisavó: "O senhor aí não manda mais, agora quem manda é meu filho". 

As histórias se repetem. Algumas já não sei mais quantas vezes ouvi, e vi. Mas outras, ela parece contar sem querer. Elas parecem escapar. São as histórias secretas. Inéditas.

Dessa vez, ela falou do restaurante que sua avó tinha. Na rua Bela Cintra.

Depois, ela me contou que quase nunca se lembra daquilo com que sonha. Talvez ela sonhe com meu avô. E até faça as perguntas que tanto quer fazer. Não se lembra das respostas. Uma pena que não se lembre dos sonhos. Se acordada conta histórias tão incríveis, imagina sonhando.