sábado, junho 20, 2015

Do outro lado do mundo, parte 3

Quando eu voltei de férias, uma amiga me perguntou: o que você viu de comunista na China?
Eu trouxe de lá souvenirs com o retrato de Mao Zedong (jovem, com sua pintinha), mas não tinha dedicado muito tempo, depois de voltar, para colocar em ordem todo pensamento e percepções confusas e conflitantes que tive com relação ao assunto enquanto estava lá. 
Estátua de Marx e Lênin no parque Fuxing de Shanghai
A verdade é que é muito mais fácil perceber o que na China tem a ver com um governo autoritário, mas que não necessariamente tem a ver com o comunismo. O fato de simplesmente não aparecer nada quando se digita facebook.com ou google.com no tablet ou no celular tem a ver com a censura, que tem a ver com o governo autoritário. Também faz parte disso todo o esquema para tirar o visto ainda aqui e o fato de eu ter tido que assinar uma declaração dizendo que não iria escrever sobre essa viagem, porque era jornalista, por mais que dissesse que iria apenas de férias (mas ninguém pediu para ver um comprovante de que eu tinha dinheiro para pagar essa viagem nem um seguro-saúde para o período). Também tem muito a ver com isso a forma truculenta como os seguranças e policiais agem com os chineses, como a violência que presenciei no trato dos visitantes do mausoléu de Mao, em Beijing (relato a visita em um outro texto em breve).
Quadro no Museu Nacional de Artes da China, em Beijing
É claro que essas e outras coisas têm a ver sim com as ferramentas empregadas pelo partido para tornar a China um país comunista. Não apenas a censura mas também a figura de Mao e toda a adoração a ela como se fosse uma dividade capaz de fazer milagres. Como manter um país gigante com uma enorme população dentro do regime sem a força do medo e a força de uma figura carismática de líder da nação?
Mas o que ainda há de comunista na China?
Foi a primeira vez que visitei um país sob regime ditatorial, e comunista; até então, o mais perto que chegara fisicamente do assunto tinha sido na ex-Iugoslávia, na Croácia, onde são tão visíveis as cicatrizes da recente guerra civil que nem consegui ver onde tinha ficado o comunismo.
É óbvio que de cara só se vê o que na China é censura e autoritarismo, mas faço aqui um esforço de interpretação, correndo o risco até de ser acusada de total incompreensão do que seja o comunismo, para responder à questão da minha amiga. 
Vista norte da praça da Paz Celestial, a praça Tian'anmen
A primeira coisa que percebi foi um senso de massa e de indiferenciação que ainda lá interpretei como a falta da noção de indivíduo mas que, é verdade, vem aparecendo rapidamente, principalmente em lugares como Shanghai. Os chineses, em sua maioria, não se preocupam, como nós, em serem diferentes uns dos outros pela roupa, pelo estilo, pelo cabelo ou pelo comportamento, eles não parecem buscar diferenciar-se. Nesse sentido, achei curioso como o turismo ali, massivo, é feito em enormes grupos, todos iguais, que seguem um guia com uma bandeira usando todos chapéus ou camisetas ou lenços iguaizinhos. Algo talvez comum no Brasil há 20 anos, mas hoje ninguém mais passeia por aí orgulhoso com sua bolsa CVC. Além disso, não há filas, a não ser em caixas de supermercados ou, muito menos respeitadas, nas bilheterias de estações de metrô. Assim, vence quem chegar primeiro, quem empurrar mais. Aliás, tive a impressão de não haver esse respeito justamente ao espaço do indivíduo, me sentindo invadida o tempo todo com trombadas e empurrões (mas nada, que fique claro, de cunho sexual). Na estação de metrô, por exemplo, na plataforma, todos se amontoavam na mesma região sem escapar da muvuca em busca de portas vazias.
E a gritaria é geral. Funcionários gritam dentro dos transportes públicos com megafones, pessoas gritam quando falam aos celulares ou em conversas mano a mano, é um barulho sem tamanho.
"A fundação do partido comunista da China é resultado da integração do marxismo-leninismo e dos movimentos de trabalhadores na China", no Museu de Fundação do PCC, em Shanghai
Outra coisa, além desse senso comunitário que me pareceu muito forte -os parques também estavam sempre cheios de pessoas fazendo atividades em grupo, como cantar, dançar, lutar, mas não havia gente se exercitando sozinha- foi perceber o tamanho do Estado. O funcionalismo parece enorme. Dos varredores de rua aos policiais, passando por três funcionários dentro de cada ônibus. É facilmente perceptível um inchaço da coisa pública no número de funcionários.
Reconstrução com bonecos de cera da reunião de fundação do PCC, espécie de Santa Ceia com Mao ao meio, no museu de fundação do partido em Shanghai
Diria que essas são as duas principais características que pude perceber que ligaria ao comunismo, mas não posso dissociar disso também a maneira como as mulheres estão inseridas na sociedade chinesa. Há monumentos públicos com mulheres. Quantos monumentos já vi no Brasil em que mulheres estão retratadas? Nenhum que eu lembre. No chamada Empurra-empurra, em São Paulo, por exemplo, não lembro de ter visto mulheres. Na China, a mulher camponesa e a mulher operária aparecem representadas em pé de igualdade aos operários e camponeses homens. Embora não haja mulheres nas representações ligadas à fundação do PCC, elas eram bem vindas nas guardas vermelhas. (Sobre a sensação de não-machismo na China prometo outro texto)
Pintura de Li Xiangyang, "Órfão de Camarada", de 1982, no Museu de Arte de Shanghai
Porém, tudo isso dito acima mistura-se a uma incrível abertura ao outro, ao capitalismo e ao estrangeiro. Há McDonalds e Coca Cola em todo lugar e as marcas de sempre daqui também estão por lá em mercados e lojas. Fiz compras em um Carrefour, comprei sabonete Johnson & Johnson etc.
Shanghai é de fundir a cuca. Globalizada, há décadas ocupada por estrangeiros, ali a atividade principal é fazer dinheiro e tudo parece girar em torno do ato de comprar. Assim, qualquer tentativa de compreensão mais profunda do sistema chinês é barrada pelo próprio paradoxo que vive o país hoje. Por quanto tempo mais será possível esconder dos chineses o massacre da praça da Paz Celestial com as ferramentas anti-censura para a internet e com a grande presença de estrangeiros no país?
Se fosse para fechar com uma interpretação, eu diria que o comunismo que um dia houve na China já fez água e hoje o país vive apenas com o que de pior havia nele: autoritarismo, ufanismo e censura.

Quadros na área de galerias de Shanghai, a famosa Moganshan Lu