segunda-feira, julho 09, 2018

Conteúdo lésbico insuficiente

Nesta semana me aconteceu uma coincidência muito estranha. Ou não. Estava prestes a terminar de ler "Fome", de Roxane Gay, quando assisti ao standup "Nanette", de Hannah Gadsby. E os dois têm tanto em comum que senti necessidade de escrever para tentar organizar essas semelhanças. 

Não sou uma usuária frequente da Netflix, muito porque sou ruim de ver TV (nem tenho uma em casa), e porque tenho uma habilidade rara de não seguir séries do jeito certo (vocês não imaginam como se dá meu bem-querer por "Game of Thrones"). Mas, graças ao meu irmão, eu tenho um login.

"Fome" já estava no meu radar há muito tempo, apareceu em diversas listas de melhores do ano nos Estados Unidos, mas quando foi mencionado no prêmio Lambda, eu dei um basta na procrastinação e resolvi pegar um volume emprestado.

O livro de Roxane Gay é sobre si mesma, sobre seu corpo e seus traumas. Ela é uma mulher americana negra, de família haitiana, e gorda. Em determinado trecho do livro, ela diz já ter chegado aos 260 quilos. A passagem em que ela vai a um encontro para pacientes que querem fazer a cirurgia de redução de estômago é assustadora. O texto é formado por diversos capítulos curtos, de uma a cinco páginas, nos quais ela fala de suas experiências num corpo grande, pesado e mal tratado pelos outros. 

O que ele pode ter em comum com "Nanette"? Quase tudo, mas, sobretudo, o vocabulário sobrevivente.  

A discussão sobre isso é tão pouco presente nas obras produzidas por aqui, tão pouco presente na crítica brasileira. Falamos tão pouco do lugar da vítima e, quando falamos, quem fala são as pessoas que não são vítimas. Talvez estejamos dando ouvidos às mesmas vozes de sempre.

As vozes de Roxane e de Hannah são vozes de sobreviventes, de vítimas de abusos sexuais. E as duas são mulheres que sabem, agora, depois de muito esconder-se, levantar suas vozes. Ambas trafegam muito bem dentro do universo que sobreviventes têm construído para se conectar.

Tanto no livro quanto no espetáculo de standup as histórias seguem essa linha: 
abuso, 
a autodepreciação como tentativa de superar o trauma (Gay passa a comer descontroladamente, criando para si um corpo que cause repulsa aos violadores em potencial; Hannah faz piadas), 
muito silêncio, 
muita culpa (ambas falam sobre achar, de alguma forma, que mereciam sofrer o abuso que sofreram), 
vergonha (esse elemento grita nas duas obras) 
e então a conexão, a percepção de que falar sobre o assunto não vai curá-las, mas vai ajudá-las a se conectar e a, quem sabe, evitar outros abusos, ou, pelo menos, evitar outros silêncios.

Gay conta o dia em que descobriu o vocabulário sobrevivente, num livro, e da sensação de saber que ela não era a única mas que, infelizmente, assim como ela, muitas outras mulheres haviam sido estupradas. Descobriu que sua experiência de medo, vergonha, raiva de si, era comum em muitas outras pessoas. Ao final, quando narra a incapacidade de tratar do assunto com a mãe ainda hoje, ela fala sobre a esperança de que sua sobrinha não tenha que passar por um abuso e, se passar, que possa procurar ajuda, justiça, e não ficar calada e sofrendo sozinha.

Da mesma forma, Hannah escondeu o fato de ter sido abusada e de ter apanhado, escondia em piadas sobre seu corpo, sobre sua identidade, sobre sua orientação sexual. Mas agora, não dá para perder tempo, ela diz. Não me faça perder meu tempo. 

Existe uma urgência nas duas mulheres, uma necessidade de tentar mudar a trajetória de suas vidas, de buscar ser melhor. O que as duas estão fazendo, e elas falam disso com todas as letras, é buscar seu espaço.

Em um dos meus trechos favoritos do livro, Gay diz: "Isso é o que ensinam à maioria das garotas --que devemos ser magras e pequenas. Não devemos ocupar espaço. Não devemos ser vistas e ouvidas, e, se somos vistas, devemos ser uma visão agradável aos homens, aceitáveis na sociedade. E a maioria das mulheres sabe disso, que nós devemos desaparecer, mas isso é algo que tem de ser dito de forma ruidosa, repetida, para que possamos resistir a nos render àquilo que esperam de nós."

Bom, certamente não esperam de nós um standup cheio de verdades. Um standup, como muitos chamaram, raivoso --curioso como homens são incisivos, assertivos, mas mulheres são raivosas. "As pessoas só se sentem seguras quando o humor raivoso é feito por homens. Quando eu o faço, sou só uma lésbica furiosa estragando a diversão", diz Hannah.

Vamos estregar a diversão. Essa alegria de homens brancos heterossexuais que faz com que mulheres andem com medo nas ruas, de dia e de noite, que nos faz pensar duas, três, quatro vezes se vamos mesmo sair com aquele short curto naquele dia quente. Fico imaginando o que homens pensam ao ouvir de Hannah as coisas horrorosas sobre como só o que precisamos é uma surra de pau na cara e cavalgar num pinto para melhorar nosso dia. Ela faz aquilo parecer o que realmente é: asqueroso. Mas quem nunca ouviu isso na vida?

O tempo é de urgência. E não de hashtags. O tempo é de não deixar passar batido. Não me faça perder meu tempo.

PS. É claro que há outros pontos de contato entre "Fome" e "Nanette", e um deles é a orientação sexual, e como mesmo "our people", como diz Hannah, dá os seus "feedbacks" um tanto cruéis. Ambas falam sobre não se encaixar no gênero da forma como é esperado pela sociedade, ambas contam terem sido confundidas com homens. Mas isso fica para outro momento em que esse blog ressuscitar. Por enquanto, o conteúdo lésbico será insuficiente.