segunda-feira, agosto 15, 2011

Woodstock



Finalmente assisti ao filme de Ang Lee sobre o Woodstock. No momento meu livro na cabeceira, ou melhor, no baú porque minha cama não tem cabeceira, é “Como a geração sexo-drogas-e-rock’nroll salvou Hollywood” de Peter Biskind. E há muito em comum entre eles. O sentimento que me despertam é a nostalgia, e uma invejinha.
            Lá pela metade do filme, quando o pessoal já está todo reunido na cidade e tem um showzinho para a comunidade no quintal do motel, meu pai, que estava assistindo comigo, fala
            - Isso nunca mais vai acontecer!
            Ele leu minha mente, mas para mim a sentença aparecia mais como uma interrogação do que como afirmação. Eu pensava sobre isso durante todo o filme, será que nunca mais teríamos algo semelhante? Não ao Woodstock em si, mas o momento e tudo o que ele representou, a era de Aquarius teria sido breve e única?
            Um policial diz:
            - Vim aqui porque queria dar umas cacetadas nuns hippies.
            Eu olhei para meu pai e disse:
            - Nunca mais vai acontecer porque eles ganharam.
            Eles, que criam o dia do orgulho heterossexual, que acham um absurdo um beijo gay na televisão, eles... e vocês sabem bem quem...
            Os hippies não eram a maioria e nem detinham a ideologia dominante, o “paz e amor” perdeu, o amor livre perdeu, a ingenuidade, segundo meu pai, perdeu. E não venham me dizer da AIDS e das drogas cada vez mais químicas e mortais, mais do que o modo de vida, o pensamento foi soterrado.
            No livro de Biskind o momento da virada é representado pelos assassinatos cometidos por Charles Manson. O medo marcou o fechamento das portas, dos corpos e das mentes. A confiança, a amizade, a camaradagem se foram.
            O fazendeiro do local do Woodstock simpatiza com o pessoal que chega porque eles dizem obrigado e por favor para tudo. A noção de comunidade, respeito e amor pelos outros ficaram presas em alguma curva do rio.
            Okay, não aconteceu no Brasil e nem acontecerá. Mas não é uma questão bairrista. O que aconteceu entre aquele um milhão de pessoas não acontecerá de novo em lugar algum do mundo. E parecia tão legal!


segunda-feira, agosto 08, 2011

Uma vez escoteiro...




Hino Alerta (Rataplan do Arrebol)

Rataplan do arrebol,
Escoteiros vede a luz!
Rataplan! Olhai o sol
Do Brasil que nos conduz

Alerta, ó Escoteiros do Brasil, alerta!
Erguei para o ideal os corações em flor!
A mocidade ao sol da Pátria já desperta
A Pátria consagrai o vosso eterno amor
Por entre os densos bosques e vergéis floridos,
Ecoem nossas vozes de alegria intensa!
E pelos campos afora em cânticos sentidos
Ressoe um hino ovante à nossa Pátria imensa!
Alerta! Alerta! Sempre Alerta!
Um, dois! Um, dois!
Rataplan do arrebol,
Escoteiros vede a luz!
Rataplan! Olhai o sol
Do Brasil que nos conduz

Unindo o passo firme a trilha do dever,
Tendo um Brasil feliz por nosso escôpo e norte
Façamos ao futuro, em flores antever
A nova geração jovial confiante e forte!
E se algum dia acaso a Pátria estremecida,
De súbito bradar: Alerta aos Escoteiros,
Alerta respondendo, à Pátria a nossa vida
E as almas entregar iremos prazenteiros!
Alerta! Alerta! Sempre Alerta!
Um, dois! Um, dois!


Esperando mais de quarenta minutos pelo queridíssimo secular na USP, enquanto o sol se punha, justamente por conta do arrebol*, de repente, não mais que de repente, surge em minha cabeça a letra dessa música que transcrevi acima. Primeiro, não pude acreditar que conseguia me lembrar de toda a letra, as duas partes; segundo, comecei a prestar atenção nas frases; terceiro, pensei comigo: entregar minha alma prazenteira é o #$@%&¨!!!
            Explico: fui escoteira durante seis anos, dos 10 aos 16, com direito a ser Escoteira da Pátria, insígnia mais alta que um escoteiro entre 15-18 anos pode conseguir. Fui monitora de patrulha, escoteira (11-15) e guia (15-18), sabia fazer amarras e nós e todos os outros clichês sobre escoteiros que você deve estar pensando; sim, eu usava roupa caqui, meia até o joelho, saia e um chapéu meio-de-safari. Ah, e um lenço no pescoço!
            Eu era escoteira de verdade, não tinha vergonha de dizer que o era, saía na rua de uniforme e sempre defendi os preceitos do movimento, mas-porém-contudo-todavia hoje eu não consigo me conformar de ter sido assim e feito certas coisas. Depois daquele momento no ponto de ônibus da USP, cheguei em casa e disse à minha mãe, que também era do movimento: como você pôde deixar que sua filha cantasse uma música dessas?
            Mea culpa, fui eu, com uns nove anos de idade, que li em algum lugar sobre os escoteiros e enchi o saco dos meus pais para entrarmos nessa. Não imaginara que daria tão certo, e a família toda entrou no esquema, com louvor! Não digo que seja arrependimento o que sinto, na verdade é um choque, parece que cada vez que penso sobre o escotismo, e meu envolvimento com ele, fico estarrecida de nunca ter percebido certas coisas enquanto estava lá, indo todo sábado hastear e arriar bandeira, todo feriado acampar sem chuveiro quente e às vezes sem banheiro, no meio do mato!
            Não vou aqui ceder às minhas tendências fefelechentas (de gente da FFLCH-USP) e dizer coisas no vocabulário esquerda-direita, ou pelo menos tentarei. Mas, convenhamos, crianças de 11 anos cantando coisas como “respondendo à Pátria nossa vida” e jurando coisas por “Deus, Pátria e próximo” faz você lembrar do que? Coisa boa é que não é! Troca o “próximo” por “família” e temos o Integralismo. Ou quem sabe a TFP. E o belicismo é evidente num movimento que tem, no Brasil, como um de seus heróis, Aldo Chioratto, escoteiro que morreu aos 9 anos na Revolução de 1932. Encontrei no site de um grupo escoteiro o seguinte trecho sobre o garoto:
“Aldo Chioratto é para o escotismo paulista, o protótipo do escoteiro. É, na realidade, a personificação do segundo mandamento da lei escoteira – “o Escoteiro é leal”; foi leal no cumprimento os seus deveres, foi leal aos princípios e à necessidade de ser responsável, mesmo que isso lhe custasse a própria vida. Os restos mortais de Aldo repousam hoje no Mausoléu Constitucionalista, ao lado de outros tantos heróis dessa epopéia. Única criança a transpor o altar e as portas da glória. Sua memória permanece indelével em nossos corações e, como um símbolo iluminado em nosso caminho, brilha para Sempre... Alerta até a Eternidade.” (fonte: http://www.carajas.com/wiki/index.php?title=Aldo_Chioratto)
Desculpem-me os bravos, mas eu sairia correndo para minha mamãe. E tenho dito. Não curto Rambo e não consigo imaginar um mundo correto no qual escoteiros, garotos e garotas menores de 15 anos, são treinados para ajudar na guerra. Podem dizer que hoje não é mais assim, que Baden Powell (criador do escotismo) pensou isso há muitos anos atrás, e que jamais requereriam as forças de escoteiros-mirins (isso me lembra o guia dos sobrinhos do Tio Patinhas) para uma guerra. Certo, aceitemos isso, o intuito do escotismo não é mandar ninguém para a guerra.
Voltemos então para o que há de preparo, o que há também de ideologia no movimento. Seguem as 10 leis escoteiras e a promessa escoteira, requisitos básicos para um verdadeiro escoteiro:
  1. O Escoteiro tem uma só palavra; sua honra vale mais que sua própria vida.
  2. O Escoteiro é leal.
  3. O Escoteiro está sempre alerta para ajudar o próximo e pratica diariamente uma boa ação.
  4. O Escoteiro é amigo de todos e irmão dos demais escoteiros.
  5. O Escoteiro é cortês.
  6. O Escoteiro é bom para os animais e as plantas.
  7. O Escoteiro é obediente e disciplinado.
  8. O Escoteiro é alegre e sorri nas dificuldades.
  9. O Escoteiro é econômico e respeita o bem alheio.
  10. O Escoteiro é limpo de corpo e alma.
Prometo pela minha honra fazer o melhor possível para: Cumprir meus deveres para com Deus e a minha Pátria, ajudar o próximo em toda e qualquer ocasião e obedecer à Lei Escoteira.

Bom, eu me lembro de ter sido a primeira vez que ouvira a palavra cortês, e vocês podem imaginar sobre vérgeis, a palavra que está no hino inicial. Meu vocabulário de fato melhorou muito nos meus anos no movimento escoteiro. As leis e a promessa são, à primeira vista, bastante, como dizer... atraentes para aqueles que acreditam que a juventude está perdida no mundo e que precisa de decência. Eu não posso negar que, pelo menos o conteúdo das leis, não difere muito da educação que tive em minha casa, por exceção de ser amigo de todos e de colocar qualquer coisa que seja acima da minha própria vida. Quanto ao conteúdo da promessa, já é mais complicado. O que discutíamos muito em casa quando éramos todos escoteiros era o real teor de uma promessa que envolva Deus, afinal, ateus não podem ser escoteiros? Aparentemente não. E até que ponto o patriotismo não se confunde com ufanismo? Não seriam essas questões muito complexas para crianças?
Vale lembrar que o movimento escoteiro é voltado para pessoas a partir de 6 anos de idade, a partir da alfabetização, e para cada estágio da vida há um estágio escoteiro. Por mais que envolva um lado lúdico e de educação não-formal, não posso deixar de crer que seja sim um movimento ideologicamente perigoso. Imitação de exercito na prática e na teoria, uma miniatura de exercito, por assim dizer. A disciplina, o cotidiano, os acampamentos...
Dizem: “uma vez escoteiro, sempre escoteiro”. Sinto muito. Eu fui e não sou mais, muito obrigada!


*s.m. Cor avermelhada das nuvens quando nasce ou se põe o sol.

quinta-feira, agosto 04, 2011

On a le droit, on n’a pas le droit

Sendo babysitter de duas crianças francesas durante poucos meses pude aprender muitas coisas da cultura francesa, já que vi de perto a educação de crianças de uma família da classe média parisiense. Às vezes parecia que o menino de 4 anos e o outro de 8 anos eram mais educados do que eu, no sentido disciplinar. Já tinham me avisado aqui no Brasil que as crianças francesas não dizem “Minha mãe deixa isso, minha mãe não deixa aquilo” ou “Eu posso isso, eu não posso aquilo”, mas sim: “Tenho o direito a fazer isso, não tenho o direito de fazer aquilo”. Curioso, não?
E era exatamente assim! Eu me lembro de uma esquina que atravessávamos sempre na volta da escola, eu de mãos dadas com o garoto menor, e, por vezes, não vindo nenhum carro no sinal aberto, eu, paulistana da gema, fazia menção de atravessar, ao que o garoto dizia: “Le petit bon homme est rouge, on n’a pas le droit” (O homenzinho está vermelho, não temos o direito [de atravessar]), e eu, corava, confesso! Eles sempre diziam nesses termos, por exemplo, que não tinham o direito de ver televisão durante a semana, que não tinham o direito de comer Nutella no lanche da tarde, essas coisas. Tem também uma frase típica da educação francesa: “touche pas mon pipi”; mas essa fica para outro dia, pois ouvi histórias ótimas sobre isso por lá.
Enfim, mas por que falar disso agora? Na verdade, o que me levou a pensar nisso não foi nada sobre crianças ou sobre a França ou sobre Paris, mesmo que esses últimos dois não saiam um segundo da minha cabeça. Bom, ouço diariamente os programas do jornalismo da rádio EstadãoESPN, que, na minha opinião, veio salvar a FM com programas bem feitos e muito interessantes. Alguns desses programas, os meus preferidos, fazem perguntas no ar para os ouvintes responderem por SMS ou twitter, e gosto de participar quando a discussão é quente (uma vez discuti com um deputado muito do safado sobre lei que obriga os restaurantes a divulgar valor calórico de todos os pratos, mas isso também fica para outro post).
          Dia desses, após manifestações de sindicatos na Av. Paulista e na Av. Pacaembu, a pergunta era: “Você acha que essas pessoas tem o direito de fechar vias da cidade para se manifestarem?”. Quem me conhece pode imaginar a cara que fiz na hora, aquela minha cara que vem acompanhada do grito “Manooooooo!”. Está tudo errado, sobre direitos eu não tenho que achar se as pessoas têm ou não, direito ou se tem ou não se tem, não sou eu que vou achar se alguém tem ou não, e outra, e foi o que respondi por SMS, até onde eu saiba todos temos o direito de livre reunião, greve e expressão, ou não? Essas pessoas quem, cara pálida? E é aí que cheguei aos meninos franceses de quem sinto tanta falta: eles tinham a exata noção de seus direitos. Ok, concordo, são muito mais simples do que nossos direitos como cidadãos, já que são direitos e deveres impostos pelos pais, mas, até que ponto é falha nossa e até que ponto é falha do Estado o fato de não sabermos exatamente quais são nossos direitos e nossos deveres? Sem ladainhas sobre as falhas na educação pública, por favor. Por que no Brasil a própria ideia de direito é tão confusa a ponto de uma rádio séria com funcionários esclarecidos (assim me parece) fazer uma pergunta dessas? E outra, existe por trás disso uma noção que ninguém pode negar que exista entre nós: a noção de que temos poderes de colocar e tirar os direitos dos outros pela nossa simples opinião egoísta. Explico: confundimos muito o fato de gostarmos ou não de alguma coisa com o poder de questioná-la a ponto de negá-la a alguém, isso sem maiores discussões e sem levar em conta a sociedade e a democracia. Na pergunta da rádio há essa confusão, se você se sente incomodado por estar parado no trânsito por conta da manifestação que toma a Av. Paulista você pode questionar o direito do outro, pelo simples fato de você perder minutos a mais no trânsito você pode duvidar de um direito tão importante quanto o da livre reunião e manifestação. Se eu acho que eles tem o direito? Eu não acho, eles tem, e eu também, e ponto. Se eu gosto ou não, aí é que se pode perguntar. Se o fato de uns gostarem e outros não deve mudar o direito, bom, foi aí que entrou o gosto dos militares, né?