sexta-feira, julho 28, 2017

Bela Cintra, 221

No carro, paradas no semáforo, minha avó olha para mim e fala. "Vou te falar uma coisa. Você pode achar que é besteira, mas eu queria tanto sonhar com seu avô. Eu queria poder perguntar se onde ele está, ele está bem, se ele sente dor, saber como ele está."

E então, pela primeira vez, eu confessei a ela. "Eu sonho muito com o vovô, vó." 

Eu queria dizer para ela: deixa que eu pergunto. Mas achei que seria falso. Eu não faria isso, porque para mim não faz muito sentido. Mas eu torço para que ela consiga sonhar com ele.

Então eu expliquei para ela que meus sonhos com o vô são do passado, na vida que ele tinha aqui, com a casa dele, as roupas dele, na cidade em que ele morava.

Essa minha vó é uma grande contadora de histórias. São histórias de sua vida. Reais ou inventadas, para mim pouco importa. Se reais, impressiona pela maldade das pessoas. Se imaginadas, o que impressiona é a capacidade de criação da minha vó.

E ela não apenas narra as suas histórias. Ela atua. E nesse dia, ali na sala da minha casa, ela caminhou até a porta da cozinha, ficou bem ereta e imitou seu pai chegando em casa. "Pa-pa. Ele usava botas grandes, e batia um pé depois do outro quando chegava na porta. Pa-pa." E fez o gesto descrito.

E ela imitou minha bisavó --sua sogra--, sua madrasta (as melhores histórias envolvem essa mulher, que se fingia de mãe), suas irmãs. Encenou a fuga de sua mãe da fazenda --digna de novela das seis--, sua vida na fábrica de televisões e rádios na Vila Maria, sua adolescência regrada pelo pai e seu casamento.

O pai, chocado com os cabelos curtos e calças compridas que ela usava dois dias depois do casamento, ao qual ele não foi, ouviu da vizinha, minha bisavó: "O senhor aí não manda mais, agora quem manda é meu filho". 

As histórias se repetem. Algumas já não sei mais quantas vezes ouvi, e vi. Mas outras, ela parece contar sem querer. Elas parecem escapar. São as histórias secretas. Inéditas.

Dessa vez, ela falou do restaurante que sua avó tinha. Na rua Bela Cintra.

Depois, ela me contou que quase nunca se lembra daquilo com que sonha. Talvez ela sonhe com meu avô. E até faça as perguntas que tanto quer fazer. Não se lembra das respostas. Uma pena que não se lembre dos sonhos. Se acordada conta histórias tão incríveis, imagina sonhando.






Nenhum comentário: