quinta-feira, fevereiro 11, 2016

Clube de leituras secretas

Na minha turma de amigos de quando eu estava no ensino médio trocávamos livros, alguns, secretamente. De quem escondíamos esses livros e por que? 

Eu nem me lembrava mais disso, ou pelo menos não pensava nisso há tempos. Foi "Carol" que me fez lembrar desse clube de leituras secretas. O clube em si não era secreto, trocávamos livros abertamente, coisas como o novo "Harry Potter" e, lembro, rolou até aquela imitação fajuta do Harry chamada "Artemis Fowl".

Mas dentro desse esquema de um-compra-e-empresta-pros-outros alguns livros corriam de mão em mão sem que alguns outros do grupo soubessem, e líamos, em casa, nos esforçando para que nossos pais também não soubessem. E eu digo corriam porque líamos muito rápido mesmo. Aquela coisa: estudantes, não trabalhávamos, chagávamos em casa e passávamos a tarde toda lendo, às vezes nem dormíamos, se o livro fosse bom, e, assim, no dia seguinte, o livro já estava com outra pessoa.

"Carol", no qual o novo filme de Todd Haynes é inspirado, de Patricia Highsmith, foi um desses livros. Eu comprei num sebo por R$ 7 (ainda há o preço escrito a lápis na primeira página), li, sublinhei loucamente, e depois repassei pros amigos. Ele voltou para mim e recorri a ele quando vi que, uau, alguém o filmaria.



Até então, talvez porque fosse um desses livros do clube, eu achava que só eu tinha lido esse livro. A diferentona. Ninguém nunca tinha comentado esse livro, nunca via ele vendendo nas livrarias, todo mundo só falava de "O Talentoso Ripley".

Outros livros dos quais me lembro desse clube de leitura são "Hell - Paris 75016", da Lolita Pille, "Cem Escovadas antes de Ir para a Cama", de Melissa Panarello, e "O Terceiro Travesseiro", de Nelson Luiz de Carvalho. O que todos eles têm em comum?

Esses livros falam de descobertas sexuais. Dos quatro, "Carol" é o menos explícito, e o mais antigo também, dos anos 50.

Lembro que "Cem Escovadas" era bastante explícito e descritivo. Inclusive, lembro que, como a edição era minha, eu emprestei para minha avó -eu não me esforçava tanto quanto meus amigos para que meus pais não soubessem o que eu estava lendo, já que meu pai tinha me dado "Admirável Mundo Novo" para ler quando criança, eu achava que tudo bem ler sobre sexo. Eu já estava ligada, à época, que ela lia esses Sabrinas de banca de jornal. Quando ela me devolveu, disse: "Nossa, tem coisas aí das quais eu nunca tinha ouvido falar". Nem eu vó, nem eu.

Esses livros eram as nossas Playboys. Mais: no caso de "O Terceiro Travesseiro" e "Carol", eram nossa conexão com o mundo homossexual numa época de internet incipiente. Esses eram ainda mais secretos, eles não só tratavam de sexo, eles tratavam da descoberta homossexual. Eles e o CD da dupla russa "t.A.T.u", que era sensação entre algumas de minhas amigas.

A descoberta sexual numa escola católica de classe média alta conservadora não era moleza, e, quando essa descoberta era marcada pela orientação sexual diferente da norma daquele ambiente, era ainda mais pesado. E esse era o nosso jeito, o jeito nerd que éramos, de aguentar o tranco.

Lembro de imaginar as festas de Lolita, o cara da moto de "Cem Escovadas" e, é claro, de sonhar com Carol. Agora vê-la encarnada na figura de Cate Blanchett é um choque imenso naquela adolescente que eu fui e que se sentia tão deslocada quanto Therese na vida.

terça-feira, janeiro 26, 2016

Minhas três São Paulos

17
7,5
3

Esses são os números que representam, em quilômetros, a distância a pé de uma casa em que morei até o Marco Zero de São Paulo. 

Recentemente me mudei de casa, e de bairro. Isso apenas pela segunda vez na vida -na verdade terceira, mas vou desconsiderar a casa na qual fui bebê, que poderia ser a casa 6,5, na zona norte. Hoje moro na casa 3, ou seja, a 3 km do Marco Zero. Os bairros nos quais eu morei, como se pode imaginar pela distância do centro histórico, são extremamente diferentes entre si.

Como deve acontecer com muitos paulistanos, o caminho foi esse: da mais distante para a mais próxima do centro, da periferia, portanto, para o centro.

Até os meus 15 anos morei na casa 17, num bairro na zona leste, aquela região que aparece apenas como um bloco uniforme, mas que na verdade é um grupo de bairros extremamente diferentes entre si. No "centrinho" do bairro há um mercado, farmácia, perfumaria, padaria, escola estadual e um posto de saúde. Minha avó materna mora ali há anos, mais de 40. Nas fotos antigas, as ruas eram de terra. Até pouco tempo atrás, inclusive, havia uma rua ainda não pavimentada no bairro, a qual chamávamos, evidentemente, a rua de terra. Qual o caminho para a feira de quarta? Olha, você passa a rua de terra e segue reto, sobe e lá no alto é a rua da feira.

Os únicos prédios do bairro, que fazem parte do mesmo condomínio, foram construídos há cerca de 15 anos, e falavam nas ruas que eles iam cair. Até então era assim: fulano mora em prédio? Então é "dos predinhos", bairro vizinho, na parte baixa da região.

Ali, as pessoas saem na rua com qualquer roupa confortável, vão na padaria de chinelo e os vizinhos se conhecem pelos nomes. Quando você liga para um e não consegue falar, liga para o vizinho e vê se ele sabe alguma coisa do paradeiro daquele que você procura. As famílias moram ali há anos e, como minha avó, há muitos idosos cujos filhos e netos já se mudaram de bairro mas quando eles voltam para visitar os vizinhos reconhecem e acenam.

Nos anos 90, ali entravam na sua casa para roubar o seu bujão de gás, ou a sua bicicleta guardada no quintal, ou arrombavam seu carro, dentro da sua garagem, para levar o toca-fitas. Roubavam sua antena de TV também, no telhado da sua casa. Um vizinho envenenava o cachorro do outro para que ele parasse de latir. Um vizinho mais legal só atirava laranjas no animal. Quando as linhas telefônicas eram mais caras do que aluguéis de casas em caso de emergência você usava o telefone do vizinho mas para pedir uma pizza você andava três quarteirões até o orelhão mais próximo.

Você pode achar que 17 km não é nada. Mas para chegar a uma estação de metrô o jeito mais rápido é andar uns 15 minutos até a avenida principal da região e pegar uma lotação ou então, se quiser andar menos, pegar o ônibus no "centrinho" que, como vai por dentro, pode levar uns 40 minutos até o destino final -isso fora da hora do rush e sem chuva. E aí tomar o metrô até o Marco Zero. 

Aos 15 me mudei para a casa 7,5, num bairro em expansão imobiliária e de moradores classificados como "novos ricos", ou seja, gente que, como eu, saía da periferia para se aproximar do centro e do trabalho. A linha do rodízio do centro expandido passava do lado de casa, assim como o trem e o metrô da linha vermelha.

Ali as pessoas olham atravessado para quem vai à padaria ou ao mercado de chinelo e com a "roupa de fazer faxina". Os prédios têm entrada de serviço e elevadores "de serviço", por onde circulam as empregadas domésticas cujos nomes apenas os porteiros sabem. 

As casas que restam no bairro estão sendo demolidas numa velocidade vertiginosa para vermos crescer, também em alta velocidade, prédios altos, residenciais ou comerciais, cheios de consultórios médicos e dentários. Há vários hospitais particulares no bairro também, mas no posto de saúde é possível marcar consulta com o ginecologista pro mês seguinte, talvez até para a semana seguinte.

Há dois shoppings centers, cada um com suas várias salas de cinema, mas um teatro bom só foi construído recentemente, dentro de uma escola, e recebe peças de comédia e shows de bandas cover. Há diversos mercados, várias lojas de rua de tudo o que você precisar, inúmeras escolas, particulares e públicas, bares e restaurantes, de mexicano a mongol. Na praça do "centrinho" do bairro tem agências bancárias de todos os bancos que se imaginar, padaria com ótimo pão italiano, salão de cabeleireiro, cafeteria, mercado, cursinho, papelaria, loja de calçados, de chocolates, igreja, e muitos carrinhos de cachorro-quente.

Tudo é perto mas ninguém faz nada a pé. As famílias têm dois ou três carros e tiram eles da garagem para tomar uma cerveja (e depois voltar dirigindo), jantar no restaurante a três quadras ou ir no cinema a quatro quadras. As pessoas têm medo de andar na rua de noite. E por isso as ruas são sempre desertas à noite. E histórias de roubos e assaltos se espalham entre os moradores dos condomínios, que fazem abaixo-assinado contra projetos de "habitação social" e pedindo postos de polícia nas praças.

Dali é possível chegar ao Marco Zero, de metrô, em cerca de 10 minutos.

Agora moro na casa 3. Aqui tem gente passeando com cachorro na rua às 3 da manhã. Há muito idoso e muita gente solteira e morando sozinha. Os prédios novos são raridade e os antigos, dos anos 50 e 60 são a maioria. Aos domingos grupos de crianças brincam no meio da rua jogando bola ou apostando corrida. Grupos de adultos fazem churrasco na calçada. A cada esquina um gênero diferente de música embala o almoço.

Há mercados pequenos, nenhum hiper mercado, farmácias, hospital público, posto de saúde, teatros, escolas públicas, particulares e uma grande escola judaica. As ruas estão sempre sujas, cheias de lixo e restos de móveis. Se você vacila caminhando pela calçada um menino, ou menina, passa de bicicleta e leva o celular da sua mão. 

Em algumas ruas, casas abandonas que um dia devem ter sido maravilhosas se enfileram. Grandes galpões guardam a memória de um passado de fábricas ao lado de grandes casarões que pertenciam aos mesmos donos. Aqui os moradores de rua conhecem os moradores dos prédios pelo nome, e vice-versa. E se cumprimentam. E aqueles trocam conselhos por comida e moedas desses.

Daqui é possível ir ao Marco Zero a pé em uns 40 minutos.

Essas São Paulos são tão diferentes uma da outra. Seus moradores, seus hábitos, sua etiqueta, seus gostos. E cada uma tem muito a ver com o que sou. Cada uma me ensinou suas lições valiosas, do que eu quero e do que eu não quero, do que eu sou e do que eu não sou, e, acima de tudo, do que eu preciso para viver aqui e do que eu não preciso.

sexta-feira, julho 31, 2015

Qual é a magia do Mike?

A escritora feminista Naomi Wolf uma vez disse: "Suspeito que as mulheres estejam entediadas sexualmente". Eu também! 
Por uma união de peças que prega o destino + uma amiga companheira de roubadas + a minha absoluta mão de vaquice que não me deixa desperdiçar nada, nem mesmo ingressos gratuitos para o cinema, fui ver "Magic Mike XXL" na quinta da estreia. E olha que nem vi o primeiro.
A plateia era formada por mulheres, sozinhas ou em duplas, e casais de homens gays. Não havia sequer um casal heterossexual na sala. Primeira pergunta: será que nesses filmes cheios de mulheres gostosas só há homens sozinhos, ou com amigos, e casais de mulheres lésbicas? Ou será que as mulheres não se importam de acompanhar seus companheiros para ver mulheres gostosas enquanto os homens rechaçam completamente "Magic Mike"?
Logo de cara um ator tido como gatinho em Hollywood (não ligo muito pro Tatum não, mas não o acho mau ator) expõe seus grandes muques torneados em trabalhos de marcenaria. (ah, a marcenaria, esse grande clichê para enlouquecer mulheres!)
Aí o marceneiro faz uma dança muito louca, incluindo rebolados profissionais, ao som de uma música também muito louca. (ah, se os homens --especialmente os de São Paulo-- soubessem como é sexy homens dançando eles iam parar de acusar os homens que dançam de gays.)
Até aí legal né. Pensei: ok, acho que vai ser uma noite divertida no cinema.
Mas então entra toda essa história, como vocês devem saber de que se trata o filme, de strippers e danças de "clube das mulheres".
Mulheres gritando, se descabelando, se descontrolando diante de homens sem camisa que dançam e se esfregam em algumas delas. Mulheres entre 30 e 50 anos, com a câmera, e os strippers, dando especial atenção às mulheres gordas da plateia. Mulheres que são tratadas pela MC Rome (vivida por Jada Smith) por "rainhas" e num tom condescendente.
O discurso das MCs e dos strippers voltado a essas mulheres loucas por um peitoral visa aumentar sua auto-estima e condenar seus parceiros (e os homens não-strippers) como incapazes de entendê-las na cama. "Vocês são muitas e nós somos tão poucos" um deles diz em meio a um show.
Há pelo menos duas sequências exemplares dessa relação: no casarão-clube mantido por Rome uma mulher comemora com as amigas o seu divórcio, um dos "strippers" (entre aspas porque ele é mais cantor) compõe na hora uma pequena canção para a moça estimulando-a a acreditar em sua força interior, dizendo que ela é linda e que ele a ama. Isso tudo numa casa de strip.
Em outra ocasião, o grupo de strippers do tal Magc Mike está na casa de uma mulher de meia-idade recém divorciada (vivida por Andie McDowell) que está recebendo amigas e bebendo vinho. Elas, "soltinhas", começam a falar com esses caras fortões sobre seus descontentamentos na cama com seus companheiros, atuais e passados. Um deles abraça uma delas, depois de uma história sobre frustração sexual no casamento, canta para ela, mexe em seu cabelo, como se ela fosse uma criança triste, e aí senta em seu colo e se esfrega nela.
As danças, ainda que super bem executadas e com passos de street dance a serem mega louvados, simulam movimentos sexuais, com especial atenção para o pênis na boca da mulher. É claro que o stripper também simula a esfregação da cara dele na área vaginal da mulher, mas, como muitas vezes na vida real, é 10 "pênis na boca" para cada uma "vagina na boca". Além, é claro, do clássico mulher de quatro com o cara atrás.
Não estou dizendo que o filme não seja fiel à realidade, é totalmente capaz que ele retrate fielmente este universo "clube das mulheres" e o problema é a realidade mesmo.
Por que, eu me pergunto, essa mistura de sensualidade, sexo simulado e autoajuda? É disso que as mulheres gostam? É disso que precisamos?
Strippers mulheres não ficam de papinho "sua mulher tem te tratado bem?", "sua mulher dá para você sempre?", "você tem que se achar roludo, gostoso e lindo, meu rei" com os caras que foram lá vê-las tirar a roupa. Ou estou enganada?
Por que mulher tem que ganhar "terapia" quando vai atrás de algo sexual?

sábado, junho 20, 2015

Do outro lado do mundo, parte 3

Quando eu voltei de férias, uma amiga me perguntou: o que você viu de comunista na China?
Eu trouxe de lá souvenirs com o retrato de Mao Zedong (jovem, com sua pintinha), mas não tinha dedicado muito tempo, depois de voltar, para colocar em ordem todo pensamento e percepções confusas e conflitantes que tive com relação ao assunto enquanto estava lá. 
Estátua de Marx e Lênin no parque Fuxing de Shanghai
A verdade é que é muito mais fácil perceber o que na China tem a ver com um governo autoritário, mas que não necessariamente tem a ver com o comunismo. O fato de simplesmente não aparecer nada quando se digita facebook.com ou google.com no tablet ou no celular tem a ver com a censura, que tem a ver com o governo autoritário. Também faz parte disso todo o esquema para tirar o visto ainda aqui e o fato de eu ter tido que assinar uma declaração dizendo que não iria escrever sobre essa viagem, porque era jornalista, por mais que dissesse que iria apenas de férias (mas ninguém pediu para ver um comprovante de que eu tinha dinheiro para pagar essa viagem nem um seguro-saúde para o período). Também tem muito a ver com isso a forma truculenta como os seguranças e policiais agem com os chineses, como a violência que presenciei no trato dos visitantes do mausoléu de Mao, em Beijing (relato a visita em um outro texto em breve).
Quadro no Museu Nacional de Artes da China, em Beijing
É claro que essas e outras coisas têm a ver sim com as ferramentas empregadas pelo partido para tornar a China um país comunista. Não apenas a censura mas também a figura de Mao e toda a adoração a ela como se fosse uma dividade capaz de fazer milagres. Como manter um país gigante com uma enorme população dentro do regime sem a força do medo e a força de uma figura carismática de líder da nação?
Mas o que ainda há de comunista na China?
Foi a primeira vez que visitei um país sob regime ditatorial, e comunista; até então, o mais perto que chegara fisicamente do assunto tinha sido na ex-Iugoslávia, na Croácia, onde são tão visíveis as cicatrizes da recente guerra civil que nem consegui ver onde tinha ficado o comunismo.
É óbvio que de cara só se vê o que na China é censura e autoritarismo, mas faço aqui um esforço de interpretação, correndo o risco até de ser acusada de total incompreensão do que seja o comunismo, para responder à questão da minha amiga. 
Vista norte da praça da Paz Celestial, a praça Tian'anmen
A primeira coisa que percebi foi um senso de massa e de indiferenciação que ainda lá interpretei como a falta da noção de indivíduo mas que, é verdade, vem aparecendo rapidamente, principalmente em lugares como Shanghai. Os chineses, em sua maioria, não se preocupam, como nós, em serem diferentes uns dos outros pela roupa, pelo estilo, pelo cabelo ou pelo comportamento, eles não parecem buscar diferenciar-se. Nesse sentido, achei curioso como o turismo ali, massivo, é feito em enormes grupos, todos iguais, que seguem um guia com uma bandeira usando todos chapéus ou camisetas ou lenços iguaizinhos. Algo talvez comum no Brasil há 20 anos, mas hoje ninguém mais passeia por aí orgulhoso com sua bolsa CVC. Além disso, não há filas, a não ser em caixas de supermercados ou, muito menos respeitadas, nas bilheterias de estações de metrô. Assim, vence quem chegar primeiro, quem empurrar mais. Aliás, tive a impressão de não haver esse respeito justamente ao espaço do indivíduo, me sentindo invadida o tempo todo com trombadas e empurrões (mas nada, que fique claro, de cunho sexual). Na estação de metrô, por exemplo, na plataforma, todos se amontoavam na mesma região sem escapar da muvuca em busca de portas vazias.
E a gritaria é geral. Funcionários gritam dentro dos transportes públicos com megafones, pessoas gritam quando falam aos celulares ou em conversas mano a mano, é um barulho sem tamanho.
"A fundação do partido comunista da China é resultado da integração do marxismo-leninismo e dos movimentos de trabalhadores na China", no Museu de Fundação do PCC, em Shanghai
Outra coisa, além desse senso comunitário que me pareceu muito forte -os parques também estavam sempre cheios de pessoas fazendo atividades em grupo, como cantar, dançar, lutar, mas não havia gente se exercitando sozinha- foi perceber o tamanho do Estado. O funcionalismo parece enorme. Dos varredores de rua aos policiais, passando por três funcionários dentro de cada ônibus. É facilmente perceptível um inchaço da coisa pública no número de funcionários.
Reconstrução com bonecos de cera da reunião de fundação do PCC, espécie de Santa Ceia com Mao ao meio, no museu de fundação do partido em Shanghai
Diria que essas são as duas principais características que pude perceber que ligaria ao comunismo, mas não posso dissociar disso também a maneira como as mulheres estão inseridas na sociedade chinesa. Há monumentos públicos com mulheres. Quantos monumentos já vi no Brasil em que mulheres estão retratadas? Nenhum que eu lembre. No chamada Empurra-empurra, em São Paulo, por exemplo, não lembro de ter visto mulheres. Na China, a mulher camponesa e a mulher operária aparecem representadas em pé de igualdade aos operários e camponeses homens. Embora não haja mulheres nas representações ligadas à fundação do PCC, elas eram bem vindas nas guardas vermelhas. (Sobre a sensação de não-machismo na China prometo outro texto)
Pintura de Li Xiangyang, "Órfão de Camarada", de 1982, no Museu de Arte de Shanghai
Porém, tudo isso dito acima mistura-se a uma incrível abertura ao outro, ao capitalismo e ao estrangeiro. Há McDonalds e Coca Cola em todo lugar e as marcas de sempre daqui também estão por lá em mercados e lojas. Fiz compras em um Carrefour, comprei sabonete Johnson & Johnson etc.
Shanghai é de fundir a cuca. Globalizada, há décadas ocupada por estrangeiros, ali a atividade principal é fazer dinheiro e tudo parece girar em torno do ato de comprar. Assim, qualquer tentativa de compreensão mais profunda do sistema chinês é barrada pelo próprio paradoxo que vive o país hoje. Por quanto tempo mais será possível esconder dos chineses o massacre da praça da Paz Celestial com as ferramentas anti-censura para a internet e com a grande presença de estrangeiros no país?
Se fosse para fechar com uma interpretação, eu diria que o comunismo que um dia houve na China já fez água e hoje o país vive apenas com o que de pior havia nele: autoritarismo, ufanismo e censura.

Quadros na área de galerias de Shanghai, a famosa Moganshan Lu








sexta-feira, maio 22, 2015

Do outro lado do mundo, parte 2

Logo de cara, quando se chega no aeroporto de Pequim, após passar pelo controle de imigração e receber o carimbo no passaporte --e uma marca no seu visto de duas entradas indicando que você acaba de usar a primeira-- a impressão que se tem não é muito diferente da que tive em países europeus. Segue-se as placas em inglês para o trem expresso que leva ao centro da cidade, compra-se o bilhete e o trem para numa estação incrivelmente limpa dentro do aeroporto; nem se vê o lado de fora.

Estação de trem expresso no aeroporto
Do trem para o metrô a troca é simples, ainda mais para quem está acostumado a usar metrô em grandes cidades. E é só ao descer na estação de destino final e sair no meio da rua que se tem dimensão do que é estar na China. Placas em chinês para todo lado, céu cinza, bicicletas e motos elétricas (que não fazem barulho, cuidado!) enchendo as faixas à direita de largas avenidas...
Eu cheguei de manhã cedo e, claro, me perdi completamente apenas para descobrir em qual rua devia virar ao sair da estação de metrô Xinjiekou. Levei muito tempo tentando descobrir, virando de um lado para o outro o mapa do guia e o mapa que pegara no aeroporto --para que lado é o norte quando você não vê o Sol? Até que resolvi apelar para o "ni hao, dui bu qi" (oi, com licença) seguido de um "zai nar" (onde) e apontando no mapa fazendo cara de interrogação ao meu interlocutor.
Finalmente achei o hutong onde ficava o hostel, uma rua estreita que abria com um restaurante halal e onde eram vendidas frutas, motos e bicicletas buzinavam e pessoas passavam apressadas fumando e cuspindo. A garota jovem com quem fiz o check-in no hostel foi a primeira pessoa a me revelar uma das coisas que mais me marcariam nos chineses: sua estranha relação com o comunismo e Mao. Após ela ter me perguntado de onde eu era no Brasil e me contar euforicamente que tinha adorado a animação "Rio", eu perguntei de onde ela era na China, ao que ela respondeu:
-- Da província de Hunan, a mesma de Mao Zedong.

entrada do hutong Zhengjue


Ao todo passei 20 dias na China, entre Pequim, Yangshuo, Shanghai e Qingdao, cidades completamente diferentes entre si, que também me proporcionaram muito diversas experiências e despertaram, assim, diferentes sentimentos em mim.
O guia que me acompanhou, de papel, um "Routard" --guia para mochileiros francês, que eu já usara na Grécia, na Croácia e uso mesmo no Brasil-- me contou sobre um ditado chinês que diz: se quiser conhecer a história da China, vá a Pequim, mas se quiser conhecer a China de hoje, vá a Shanghai.
Pequim é uma cidade impressionante, grande, com bairros modernos, cheios de painéis luminosos à noite, avenidas assustadoramente largas nas quais faixas são exclusivamente dedicadas a bicicletas e motos. E bem no meio daquilo tudo está uma outra cidade, a imperial, a Cidade Proibida, ao redor da qual Pequim passou a crescer e virou o que é hoje, e ao sul da qual está o maior e mais representativo espaço da, para mim incompreensível, China comunista: a Praça da Paz Celestial, Tian'anmen, com o retrato de Mao ao norte e o imenso mausoléu que abriga seu corpo mumificado ao sul, separados por uma imensidão de chão cinza e uma avenida de incontáveis faixas.

visão do norte quando na Praça da Paz Celestial


Yangshuo é uma pequena cidade --para os padrões chineses-- cortada pelo rio Li, famoso pelas montanhas às suas margens e conhecida por todo o país como o local ideal para turistar de bicicleta. A região é uma das mais visitadas pelos turistas chineses e, por isso, o centro de calçadões de Yangshuo --composto por 4 ou 5 ruas--, especialmente à noite, fica entupido de gente atrás de itens de suas lojinhas e camelôs. O clima é de cidade de interior turística, e me lembrou um pouco Campos do Jordão, mas de um jeito bom.

rua principal do centro de Yangshuo


Shanghai tem ruas ainda mais largas que as de Pequim, muitas pessoas engravatadas e prédios de arquitetura esdrúxula. O rio que corta a cidade e a proximidade do mar fazem com que as noites sejam frias --ainda que fosse meio de abril-- e com ventos que desencorajam os passeios. Se eu achava que São Paulo tem shoppings demais, Shanghai me fez ver que sempre é possível ter mais, e os de lá são incrivelmente luxuosos, com imensas lojas de marcas como Hermès, Chloè, Vivienne Westwood, Salvatore Ferragamo e por aí vai.

O Pudong, em Shanghai


Qingdao, antiga colônia alemã famosa pela cerveja Tsingdao (encontrável na Liberdade e restaurantes chineses em geral), é uma cidade portuária, com praias de pedras e cheias de algas que tornam o cheiro desagradável, longas avenidas que não mudam de nome e seguem sempre reto e onde o desafio maior é se locomover, já que não há metrô e o sistema de ônibus não é em inglês nem transliterado seguindo o pinyin.

praia em Qingdao próxima ao parque Zhanqiao

domingo, maio 10, 2015

Do outro lado do mundo, parte 1

E eis que cheguei ao outro lado do mundo. Desde criança ouvia frases como as do Chaves, de que se cavássemos muito chegaríamos à China, mas eu resolvi ir de avião mesmo.

China, palavra que parecia representar o oposto, o outro, o diferente.

Quando me perguntavam por que eu iria passar férias na China, eu não sabia muito bem o que responder. Era uma série de motivos, e explicar assim, de pronto, era meio complicado.

Desde que voltei do intercâmbio na França tinha essa ideia fixa de fazer uma viagem de volta ao mundo, para a qual vinha juntando dinheiro. Já tinha pensado em todas as paradas que faria com o bilhete de avião especial para voltas ao mundo: países na África, Oriente Médio e Ásia. Porém, não queria abandonar meu emprego atual e, sendo assim, em 2015 teria de me contentar com uma viagem de um mês, de férias.

Queria então que fosse algo diferente --já havia estado na Europa três vezes nos últimos cinco anos-- e desafiador, uma espécie de test drive para uma viagem ao redor do mundo. Queria um lugar onde não entendesse as placas e sinais (na Grécia já tinha sido interessante isso), e onde a comida, a história, a cultura e os costumes fossem diferentes, mas queria também um lugar seguro o suficiente para uma garota viajar sozinha.

Desde a época do colégio tenho uma grande amiga chinesa, nascida em Hong Kong, e ela e sua família eram meu laço mais forte com a cultura chinesa. Além disso, cineastas de Hong Kong, Taiwan e da China estão entre meus favoritos absolutos, como Wong Kar Wai, Tsai Ming Liang e Jia Zhang-ke.

Então por que não a China? Mas não Hong Kong ou Taiwan, bastante ocidentalizados, a China China mesmo. E assim foi surgindo o plano das férias.

Da China para Coreia é um pulo. Por que não então visitar minha companheira de apartamento estudantil na época da Sorbonne, minha vizinha e também uma outra coreana intercambista que era minha parceira de sessões de cinema matutinas aos domingos em Paris?

Pronto, foi assim. E por isso parti.



Hoje, de volta ao Brasil após um mês fora de casa, do outro lado do mundo, a compreensão da experiência dessa viagem está se assentando ainda. Estou tentando olhar para tudo o que vivi de uma maneira talvez mais compreensiva do que fui capaz durante meu tempo ali.

É muito complicado julgar ou ler uma cultura diferente da minha com meus padrões, com a minha ideia do que seja etiqueta, respeito, educação; chega a ser injusto. Porém, qual outra lente tenho disponível?

Em 20 dias sozinha na China aprendi muito mais sobre mim mesma do que sobre os chineses. Mas também aprendi muito sobre sua história e cultura milenares, sobre as dinastias, os imperadores, a revolução, Mao, a comida, os hábitos.

Mas não foi fácil, e em alguns momentos queria desistir, pegar o avião de volta e simplesmente estar num lugar conhecido com gente conhecida falando uma língua conhecida, num lugar onde eu fosse capaz de ler as placas e conversar com as pessoas.


sábado, março 14, 2015

Madeleine

O que é memória? O que é lembrança? Segundo o dicionário lembrança é aquilo que vem à memória e aquilo que se guarda na memória, ou seja, a memória é a gaveta, e as lembranças são aquilo que guardamos na gaveta e ao que recorremos para lembrar.

Para quem, como eu, tem problemas em acessar lembranças, a memória por vezes parece aquele gaveteiro de escritório do qual você não faz a menor ideia de onde está a chave. E é claro que a informação de onde está a chave também está fechada numa gaveta emperrada, daquelas entulhadas de coisa que você puxa e carrega o móvel todo junto.

Mas aí outro dia, ao abrir gavetas -de verdade-, arquivos e caixas antigas, encontrei um mundo do qual eu havia parcialmente me esquecido, um universo de relações que o tempo e a mágoa apagaram.

Uma carta, um recado, um presente, tudo de um passado não muito distante mas do qual as lembranças rareavam, quase nunca emergiam à superfície da memória.

E, de repente, não é só uma memória vaga do que houve, mas surgem diante dos olhos e dos demais sentidos, quase como reais, vozes, cheiros, mapas, texturas e promessas de eternidade até então fechadas em caixas onde guardei o que queria esquecer.

Mas e se essas caixas reais cheias de objetos reais forem jogadas no lixo, forem destruídas para sempre? Se era aquele bilhete, aquele recorte, aquele papel de bala a chave para abrir o gaveteiro da memória, se esses pedaços reais daquele mundo que hoje só existe em lembrança ficarem inacessíveis para sempre então também assim estará esse mundo para mim?

Daqui dez anos, quando for novamente desfazer armários e abrir memórias onde não mais estarão aquelas lembranças então a chave não será girada e nunca mais sentirei aquele cheiro daquela pele branca macia e nem ouvirei aquela voz um tanto rouca e anasalada. Continuarão, talvez para sempre, trancados num arquivo remoto da memória, sem acesso porque não há chave.